Em Goiás, onde governantes desesperados entregam a educação à guarda da Polícia Militar, alunos organizam um “quebra-quebra”: destroem mobiliário, depredam o edifício da sua escola; num colégio particular no Rio, um jovem de 12 anos agride com pontapés um colega de 11 anos e é “suspenso por um dia” …
O amigo Severino diz-nos que cidadania é a medida da qualidade de vida humana, que se desdobra apoiada na presença das mediações histórico-sociais.
E o nosso amigo Freire, que alguns energúmenos exigem que saia das escolas (embora, na maioria delas, o seu espírito jamais tenha entrado), considerava a educação uma prática de liberdade. Porque havia lido esses e outros sábios brasileiros, a Cida entrou na sua nova escola disposta a fazer jus à leitura dos mestres. Chegada ao refeitório, deparou com uma longa fila e no último lugar da fila se colocou.
Não tardou que uma criança lhe dissesse: Tia, por que não vai lá para a frente da fila? Por que não “fura a fila”?
Meu querido, eu não “furo fila” – contestou a Cida.
A criança insistiu: Na nossa escola, as educadoras passam à nossa frente. Você é educadora, pode passar.
Exatamente por ser educadora é que eu não vou para a frente da fila, meu querido – Completou a Cida. E por aí se quedou o breve diálogo.
Mas não o episódio… Outra professora chegou ao refeitório, ultrapassou todo mundo e se serviu de alimento. A mesma criança, que falara com a Cida, ousou interpelar a tia que “furara a fila”. Foi repreendido por essa e outras indignadas educadoras “furonas”.
A Cida herdara uma cultura diferente daquela que ali prevalecia. Havia trabalhado numa escola onde palavras como respeito e cidadania não serviam apenas para enfeitar um PPP escrito, onde as regras eram decididas em coletivo e por todos cumpridas, onde valores escritos não eram negados na prática. Onde se educava no exercício da cidadania. Na escola de “furar fila”, a Cida surpreendia-se com o fato de haver banheiro de aluno (coletivo e sem espelho) diferente de banheiro de professor (coletivo e com espelho) e este separado do banheiro do diretor (privativo e com espelho).
Surpreendia-se que todo mundo “achasse normal” que até no defecar e urinar houvesse hierarquia. Sabia que não se prepara jovens para a cidadania, mas que se educa na cidadania, em contextos onde haja igualdade na diversidade, onde prevaleça o exemplo. Isso ela aprendera numa escola onde não se “furava fila”.
A Cida desta história encontrou quem partilhasse esperançosas práticas. Porém, quando se propôs trabalhar em equipe, reunir em assembleia com os alunos, partilhar projetos com a comunidade, foi-lhe dito que, há alguns anos, outra Cida havia tentado fazê-lo e se arrependeu.
Vícios e tabus se revelam nos mais ínfimos pormenores, representações sedimentadas tendem a esconder a origem de formas sociais de dominação. Não surpreende, por isso, que uma solícita supervisora tenha demovido a Cida dos seus audazes propósitos, ordenando-lhe que desse as suas aulinhas e fizesse o que lhe mandavam fazer. E que uma prudente diretora a aconselhasse: Cida, tenha paciência. Aqui, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Qual terá sido o desfecho desta história? A Cida terá conseguido cumprir o PPP e desenvolver cidadania? Ou terá passado da fila do refeitório para a fila de espera da consulta de psiquiatria?
Esta história admite vários desfechos. Inclusive, aquele que o eventual leitor lhe quiser dar.