Tavira, 30 de abril de 2041
Netos queridos,
Dissestes querer saber pormenores da conversa com a Alice. Satisfaço a vossa curiosidade. E aviso que a descrição que se segue, por ser mais ou menos “técnica”, poderá ser maçadora.
Senti que poderia fazer a minha boa ação diária. De modo que lhe fiz compreender que um teste determina o grau de desempenho relativamente a competências específicas e não-substituíveis. Por exemplo, o não saber o que são números decimais não pode ser substituído por saber multiplicar; o saber o que são seres vivos não pode ser substituído por saber o que são serviços públicos. Maieuticamente, questionei:
“Por exemplo, um 14 num teste é um 14 relativamente a quê? A um objetivo? A um conjunto de objetivos?”
“Eu sei lá!” – respondeu a Alice – “Na faculdade nunca me falaram disso.”
A acreditar naquilo que desabafou ao telefone, da formação contínua nem queria falar. Só lá ia “pelo certificado… e pelos cabelos.” (Alice dixit) Sob o pretexto de completar a prédica suspensa, fui dizendo à minha amiga Alice que a indicação de valores (40%, 18 valores, 112 pontos…) serviria para enfeitar testes, mas pouco ou nada servia as intenções de uma avaliação. Não diz o que o aluno aprendeu, informa (e mal) o quanto aprendeu. Porque a prova é um dos mais falíveis instrumentos de avaliação. Por si só, não fornecem indicadores fiáveis.
Ela confessou que não sabia o que fazer, mas ela e os outros professores que não se preocupavam com “coisas” de somenos importância – “Que remédio!” – teriam de preencher pautas e planilhas, no fim do período.
Para abreviar, condensarei o teor da conversa. Com infinita paciência, fiz ver à minha amiga Alice que, numa escala de 1 a 5, um ponto, algures entre 2 e 3, é diferente dos outros. Esta escala considera dois níveis negativos e três níveis positivos. Entre 2 e 3 temos uma situação de critério (o mínimo relativamente às aprendizagens pretendidas). Mas que critérios podem ser estabelecidos para uma escala ordinal, partindo de resultados quase exclusivamente extraídos de uma prova, que não é instrumento de avaliação formativa, contínua e sistemática?
É possível transpor os dados de uma escala intervalar para uma escala ordinal, mas não é aconselhável. Muito menos, no final de um período ou ciclo e para todas as competências requeridas aos alunos. Um 5 não me dizia quanto um aluno sabe mais do que aquele que teve um 4, ou o que sabia que o de 4 não sabia. Era mera ordenação sem qualquer significado.
Ainda com a Alice escutando, fiz a síntese e a moral da história. Que, no tempo da “escola seletiva”, a essência do sistema de avaliação era a classificação. Que não era possível reter um aluno, apoiando a decisão numa mera escala ordinal. E que a questão não residi em “reter” ou “não reter”, mas em aprender ou não ter aprendido determinado.
Aqui chegados, já nem os sussurrados “hum… hum…” com que sublinhava, de quando em quando, a minha explicação, se faziam ouvir. A Alice não tugia nem mugia… Apurei se ela ainda estaria do outro lado.
“Estou, estou. Continua.! Diz lá!” – devolveu a Alice, indisfarçavelmente contrariada – “Estou a tentar seguir o raciocínio.”
Em nome da razão, não prolonguei o pedagógico suplício. E a Alice aproveitou a interrupção:
“Estás para aí com esses pormenores, mas, há uns anos, até houve um professor que teve a coragem de me dizer “ó colega, dê lá o 3 ao rapaz, para ele passar!” E eu lá dei, mas o aluno nem um 2 merecia, fica sabendo!”
Eu já ouvira muitos relatos indiciadores de menoridade profissional. Reagi com solidariedade e compaixão. Respirei fundo. E finalizamos a conversa.
Por: José Pacheco