Mindelo, 26 de agosto de 2041
Hoje, é dia de aniversário da Mãe Luiza. Já não tem idade e jamais deixei de sentir a sua inefável presença. Acompanha-me nas andanças da vida, tal como a aliança que ela usou no dia do seu casamento e que ajustei ao meu dedo anelar. A sua memória me ajuda a suportar as dores deste corpo envelhecido e se mistura com outras memórias, que desejaria erradicadas.
Por que invoco a doce Mãe Luiza à mistura com um arrazoado mais ou menos amargo? Suspeito de que se trata de uma cilada da memória. A de longo prazo está atafulhada de informação inútil. Lamentavelmente, se mistura com maternas recordações. Inevitavelmente, o vício de pensar a existência pelo viés da educação me conduz a reflexões mais ou menos pedagógicas.
Vivíamos num tempo de crise de valores, de uma crise educacional a exigir um compromisso ético, e fazíamos a nós mesmos duas perguntas: Para se refundar a educação, não teríamos de repensar a escola?
O amigo Severino dizia que cidadania era a medida da qualidade de vida humana, que se desdobrava apoiada na presença de mediações histórico-sociais. A Mãe Luiza viveu num ignominioso tempo da história e da sociedade. Preocupada pelo cuidar dos outros, não cuidava de si. A vossa bisavó Luiza precocemente nos deixou, imolando-se para dar vida, para que os filhos não ficassem órfãos de ternura.
Foram-lhe negados direitos elementares, cidadania, também por obra de um modelo iníquo de sociedade, de uma escola reprodutora desse modelo e das nefastas consequências dessa reprodução. Permiti que vos explique.
Ainda hoje, quando pretendo, por exemplo, recordar o nome de uma serra, onde observei belas pinturas rupestres, sou assaltado por uma decoreba sem sentido, encasquetada no meu cérebro de criança, há mais de oitenta anos:
“Suajo, Gerês, Larouco, Falperra, Cabreira, Marão, Montezinho…”
E por aí fora, numa lengalenga sem sentido, como tantas outras associadas a conteúdos da grade curricular da época, para debitar em prova. Depois da prova, esquecidos, porque a memória era esperta e a aprendizagem não era significativa, como recomendariam o Vigotsky e o Bruner que o fosse.
Quando, já nos meus sessenta anos, passeava por Trás-os Montes, avistei uma bela montanha:
“Que montanha é aquela? – perguntei.
O meu amigo Tozé respondeu:
“Não sabes?”
“Não! Não sei…”
“É a Serra do Larouco”.
A palavra Larouco ressoou numa sexagenária memória. Finalmente! Suajo, Gerês… Larouco! Mas nada sabia do Larouco, nem do povo que por lá morava, nem da sua cultura, nem das suas necessidades, nem nada! Apenas “sabia” uma palavra: “Larouco”.
Refletindo sobre esse incidente crítico, concluí que, na década de mil novecentos e cinquenta, o professor Vasconcelos, como a maioria dos professores dos idos de vinte, agia em função de crenças, entre os quais a de que bastaria definir um conjunto de áreas e conteúdos, objetivos, ou expectativas de aprendizagem e torná-los obrigatórios a nível nacional, para que a aprendizagem de tais conteúdos acontecesse.
O velho professor não sabia que desenvolver currículo era muito mais do que impor a abordagem de um determinado repertório de conteúdos. Nem sabia que reproduzia um determinado modelo de escola e de sociedade. Por isso, a escola não me ensinou os conteúdos da BNCC de então, só me doutrinou. A decoreba não me fez mais sábio, nem mais feliz. Aliás, confesso que a única coisa que aprendi nessa escola foi a odiar.
Por isso, quando me perguntavam por que troquei a engenharia pela educação, eu respondia:
“Para me vingar”.
E acrescentava:
“Mas, consegui nela ficar por amor”.
Por: José Pacheco