Alhos Vedros, 24 de setembro de 2041
No tempo da pandemia dos idos de vinte, as escolas não estavam imunes a contágios. Aliás, enquanto instituição, estava enferma de um já longo padecimento, que não o da Covid-19. E, no início da década de vinte assistíamos ao regresso da praga dos “porquenãos”.
Numa das “Cartas à Alice”, expliquei à minha neta que os porquenãos assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam – “Era assim porque era assim… e pronto!”. A Alice entendeu. Mas havia quem não quisesse entender.
Para quem não sabe o que eram os porquenãos, direi que eram criaturas que padeciam de pensamento único, enfermidade dificilmente detectável a olho nu. A lista de enfermidades que afetavam as escolas era extensa. Referirei algumas.
O “modismo” caracterizava-se pela adopção acéfala de modas pedagógicas, quase sempre importadas. Associado ao “aventureirismo pedagógico” e ao “praticismo”, o “modismo” foi responsável por transtornos vários e graves sequelas.
O “teoricismo” (doença antípoda do “praticismo”) afetava parte significativa de uma universidade ancilosada. Os enfermos produziam inúteis teorizações de teorias inúteis, produzidas sobre teorias de teóricos que não faziam a mínima ideia das práticas sobre as quais teorizavam. No aconchego dos seus gabinetes, os afetados pelo “teoricismo” desenvolviam sofisticadas propostas, que não logravam fertilizar as práticas, dado que a “impotência prática” era um dos sintomas associados a esta maleita.
A “síndrome do pensamento único” traduzia-se num conjunto de afecções patológicas muito comuns em “opinion makers” e “especialistas”. Para estes doentes existia um só modo de pensar, um só modelo de escola. Todo o pensamento divergente, toda a prática dissonante os impelia a reações violentas. Publicavam artigos de opinião, ou meros comentários, em tom persecutório. Quem ousasse interpelar o modelo único, sugerir alternativas, ou instituir outras práticas, sofreria a perseguição feroz de hordas de porquenãos, porque o pensamento único não permitia veleidades.
Outros porquenãos manifestavam uma particular predileção por desdenhar daquilo a que chamavam de “novas teorias das ciências da educação”. Na opinião dos porquenãos, essas “teorias” eram a causa dos males que afetavam o sistema educacional. Porém, se lhes perguntássemos quais eram essas nefastas “teorias”, não saberiam responder, porque falavam de ouvido e entoavam sempre a mesma cantilena. Provavelmente, se conhecessem alguma teoria e a tivessem estudado, não saberiam entendê-las, dado que o diletantismo e o dogmatismo – sintomas associados à síndrome do pensamento único – causavam uma peculiar espécie de cegueira, que os impedia de vislumbrar horizontes vários, para além do seu restrito quadro de referências.
Poderia falar-vos de outras doenças profissionais pouco estudadas, de que as teses sobre stress e mal-estar docente eram meros sucedâneos. Poderia falar-vos da mesmice, do isolacionismo, do neocorporativismo, da burocratização, do ensimesmamento, do fundamentalismo pedagógico etc.
Quem se atrevesse a comentar as diatribes dos porquenãos ou se referisse, elogiosamente, a escolas que substituíam a tralha tradicional por dispositivos e práticas inovadoras, ou que derrubavam obstáculos à inclusão, expunha-se. à sanha dos porquenãos.
Felizmente, havia quem, no tempo do medo, não os temesse e continuasse a expor-se e a dizer o que acreditava ser preciso que fosse dito e redito. Assim, atravessamos os tempos sombrios dos idos de vinte.
Por: José Pacheco