”Regresso ao passado”?

Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:

“O Governo com o seu regulamento dá os meios para se conseguirem os fins, pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno refractário, cheio de maldade, não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer restabelecer a ordem e não o consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Daqui nasce a imoralidade das novas gerações, cuja educação não pode a escola conseguir. Que interessante é uma escola bem disciplinada! Mas onde a há que deixe de ser perturbada por algum de entre muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrompendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.”

Li esse texto da revista O Ocidente, na sua edição de Maio de… 1887.

Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de 1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disciplina com uma palmatória da grossura de dois dedos, cheia de buracos. E, quando a professora já estava cansada, mandava um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem devagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam “tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola e medo de ir para casa”.

Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvimos, mas aprendemos o outro – muitos alunos viraram adultos medrosos egoístas. Dado que a aprendizagem acontece por imitação e exemplo, ignorantes, bonsais humanos impõem aos seus filhos e aos filhos dos outros a escola da violência física, ou simbólica, a mesma de que foram vítimas.

Não nos surpreendamos, quando, no fim de uma palestra, vemos o chão do auditório juncado de copos plásticos e outros deritos, ali deixados por professores. Não nos surpreendamos, quando, no fim de uma sessão da Câmara, o chão do plenário fica coberto de lixo, ali deixado por ilustres deputados. Cada sociedade tem a escola que merece (embora muitos a não mereçam).

A escola hegemônica, que ainda temos, vai semeando ignorâncias e outras violências. Ela foi concebida no início da Primeira Revolução Industrial, correspondendo a necessidades sociais da Prússia Militar: treinar jovens para a guerra, jovens obedientes a um regime disciplinar inquestionável, respeitadores de uma hierarquia imposta. Os professores do século XIX não sabiam que a autoridade não rima com autoritarismo. Que a escola não deverá preparar para a cidadania, mas que se aprende cidadania no exercício da cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, na auto-disciplina, na verdadeira disciplina, que não resulta de imposições e submissões, mas pressupõe o exercício do diálogo, a desocultação de perversos modos de relação.

Um século após o textinho da revista O Ocidente, no ano de 1988, uma “Proposta Global de Reforma” dizia-nos que o adestramento não define a educação e que a educação é incompatível com a organização autoritária da vida. Decorridos 132 anos, numa sociedade doente de egoísmo, possuída pelo medo, num tempo de pós-verdade, estaremos a assistir a um “regresso ao passado”?

 

Por: José Pacheco

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