Novas Histórias do Tempo da Velha Escoa (CLVII)

Olhão, 12 de julho de 2040

Nas suas crônicas de há mais de cem anos, a Cecília fustigava ministros e pugnava pela democratização da escola, quando aludia a “todas essas coisas que a gente precisa conhecer, antes de ser ministro da educação”.

Desde o Capanema de há mais de cem anos, a democratização desejada pela pedagoga e poeta era miragem. Até havia ministros, que recomendavam a violência física. Talvez porque não tivessem lido aquilo que, no século primeiro, um Paulo converso escreveu numas cartas aos corintos:

Ainda que eu conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, nada serei. O amor é paciente, é benigno, não se exaspera.

Vinte séculos passados, deparei com outro texto, alegadamente inspirado nas Escrituras, mas cujo conteúdo se situa nos antípodas das epístolas de Paulo de Tarso. Netos queridos, depois do que ides ler, ninguém se espante, se ouvir afirmar que todas as guerras foram feitas em nome de Deus:

É Deus mesmo quem dá grande importância à vara. Vamos examinar algumas passagens das Escrituras nas quais ele ordena aos pais que a utilizem como instrumento na criação dos filhos.

Vinte séculos decorridos sobre o Sermão da Montanha, deparávamos com um triste exemplo da barbárie fundamentalista. Se puderdes conter a náusea, que eu senti, podereis continuar a leitura:

Um dos obstáculos à disciplina é o pensamento humanista. Foi Deus quem ordenou que os pais batessem nos filhos como expressão do seu amor por eles. Tem por objetivo corrigir na criança os elementos que podem impedi-la de obedecer ao Senhor com alegria.

Esses desumanos seres humanos impunham obediência formal, talvez por via de uma interpretação literal da obediência parcial do rei Saul… Deus havia ordenado que ele destruísse todos os amalequitas, inclusive o gado deles. Ou seja, no entendimento dos fundamentalistas, o gado sofreria os efeitos das crises de humor de um Deus vingativo. E, nos Provérbios, 23,13,14, eram as crianças que sofriam a ira desse Deus cruel:

Não retires da criança a disciplina. Se a fustigares, não morrerá. Tu livrarás a sua alma do Inferno.

No país do carnaval de 2020, havia quem voltasse à segunda metade do século XIX e repetisse absurdos idênticos àquele que Thiers proferiu na Comissão Sobre a Instrução Primária, na França de há cento e sessenta anos:

Desejo tornar omnipotente a influência do clero, pois conto com ele para propagar essa saudável filosofia, que ensina ao homem que ele está aqui na Terra para sofrer.

Recebi convite para participar num programa de TV. Eis uma das perguntas, que o entrevistador me dirigiu:

E se o professor fosse ministro da educação?

Seria ministro apenas por um dia – respondi – e publicaria um decreto com artigo único: “Extinga-se o ministério da educação”.

Se deixasse de haver ministério, metade dos problemas do sistema estariam resolvidos. A outra metade se resolveria no exercício de uma efetiva autonomia, em escolas dotadas de uma gestão verdadeiramente democrática.

Na década de vinte, ministeriais aberrações, equivocadas interpretações de Escrituras e o apelo a ancestrais práticas de disciplinação levaram-me a evocar palavras do saudoso Abade Pierre:

Dou-me conta, ao escrever “Deus”, de como as palavras se cansam, se gastam. Pois não escrevia Hitler, no cinturão dos SS, “Deus está conosco”?

Por: José Pacheco

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