Boliqueime, 14 de julho de 2040
A Kátia morava na periferia de Brasília, lugar onde não havia acesso à Internet. Três meses após o início do isolamento social, nenhuma notícia lhe chegara vinda da escola das filhas. Decidiu ir à escola, explicar a sua situação e pedir algum material, para que as suas crianças pudessem estudar em casa.
Não passou da portaria. A funcionária de serviço – sem máscara protetora de si e dos outros – respondeu:
Não temos. Ligue para a secretaria e peça uma apostila.
Há mais de três meses, as filhas da Kátia e as dezenas de crianças do seu bairro estavam sem contato com escola. Mais de metade dos alunos do Distrito Federal estavam abandonados pela secretaria de educação. Isso mesmo: a situação configurava abandono intelectual. Vejamos…
O Cleber retirou os seus filhos da escola, educou-os com esmero e foi condenado em tribunal por “abandono intelectual”. Lei é lei, foi aplicada e não questionei a sentença, embora lamentasse que a jurisprudência não pudesse ser harmonizada com a pedagogia e evidências de aprendizagem. Bem como com o bom senso, porque os filhos do Cleber ganharam bolsas para estudar no MIT, algo que aqueles que passaram doze anos dentro de sala de aula não conseguiram lograr. Dentro de uma sala de aula também acontece “abandono intelectual”…
Eu nunca fui apologista de homeschooling porque, aula por aula, antes numa sala de aula do que em casa. Mas, encarava-a como medida transitória, onde houvesse enquadramento legal para a prática. No Brasil, o homeschooling era ilegal. Mas o resgate das crianças do isolamento da sala de aula tinha sido a primeira ação de proteção dos filhos do Cleber. Depois, esse pai consciente dos malefícios do instrucionismo, deu aos seus dois filhos a oportunidade de aprender em comunidade.
O direito à educação era parte de um conjunto de direitos sociais, que tinham como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas. Em 1988, as responsabilidades do Estado foram repensadas e promover a educação fundamental passou a ser seu dever. O artigo 205º da Constituição consagrava o direito da pessoa ao pleno desenvolvimento, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Todos, sem qualquer distinção, tinham (por lei!) direito à educação e, especificamente, à educação escolar, regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases. A Constituição também estabelecia que a Educação era dever do Estado e da Família, em regime de corresponsabilidade social, sendo que o primado do dever ficava com o Estado.
O artigo 208º dizia-nos que o dever do Estado com a educação seria efetivado mediante a garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, bem como pelo acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. O modelo da ensinagem imposto pelo Estado às escolas obstava ao cumprimento do disposto na Constituição.
Dados divulgados pelo Ministério da Educação apontavam para milhões de jovens abandonando o ensino fundamental. Diria que não eram os jovens que o abandonavam. Os jovens eram abandonados pelo Estado, por via do modelo instrucionista, imposto às escolas pelas secretarias de educação. Mas, quem questionava os elevados índices de evasão escolar e a deterioração das políticas públicas de educação?
No mês de julho de 2020, educadores éticos ajudaram as filhas da Kátia e de outros abandonados filhos da nação a aprender em comunidade. Uma rede de comunidades de aprendizagem foi criada no Distrito Federal. Em breve, vos direi como isso aconteceu.
Por: José Pacheco