Patos de Minas, 4 de setembro de 2040
Eram milhares e levavam para as suas escolas e comunidades inspiração suficiente para concretizar sonhos e se realizarem profissionalmente. Diziam: “Hoje, sinto-me quase feliz, à beira de voar sonhos novos. Medo não sinto. E até o inesperado me fascina. É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce”. Porém, se, ao deixar a Ponte, esses educadores se sentiam acompanhados, quando “regressavam às aulas”, eram condenados a ficar sozinhos.
A mesma solidão sentimos na Ponte, quando compusemos um núcleo de projeto e ousamos questionar o instituído. Pretendíamos trabalhar em equipe, mas a direção da escola não permitia. Os projetos humanos são produtos de coletivos e perguntávamos por que razão deveríamos voltar para a solidão da sala de aula. Velada ou explicitamente, o inspetor ameaçava:
“Porque eu mando. Porque sou vosso superior hierárquico!”
Quando esboçávamos algo diferente, as famílias manifestavam agrado, ao ver que os seus filhos aprendiam bem mais e melhor do que ouvindo aula. De imediato, a maldade sobre nós caía, e os encontros do núcleo de projeto eram acompanhados por lamentos e choro:
“Zé, é melhor desistir! Acabemos com isto. Não suporto mais. Vê lá que uma mãe me veio perguntar se tu eras pedófilo. Imagina! Foi um professor de outra escola quem lançou esse boato. Ainda bem que essa mãe veio perguntar! Mas… e aquelas que acreditam nas mentiras, que andam a espalhar por aí?”
As professoras com quem fundei o núcleo de projeto da Escola da Ponte sofriam os efeitos da sua ousadia. Muitas vezes, tive de apelar para que não desistissem, para que continuássemos juntos. Trágica sina a de um sistema que não merecia os excelentes professores de que dispunha, os mais generosos, e que permitisse que os raros focos de mudança se apagassem. Recebia mensagens de professores que se recusavam a deixar de o ser e resistiam a “ser como todos os outros”. Uma visitante da Ponte enviou-me uma carta (naquele tempo, só se comunicava por carta e telefone fixo):
“A angustia que sinto dentro de mim atinge-me de uma forma cortante. Comecei a pôr tudo em causa e, agora, tenho andado a pensar que talvez os meus colegas tenham razão. A diretora da escola me persegue e ameaça. Penso se as pedagogias não foram apenas um refugio a que eu tive de recorrer, para viver uma realidade que não suportava. Gostaria de transformar o que os meus olhos viram na Escola da Ponte. Dê-me essa oportunidade!”
Demos-lhe a oportunidade. Dissemos-lhe para agir como nós agíamos, para criar um núcleo de projeto, para exigir que as ameaças dos superiores hierárquicos fossem feitas por escrito. E que… desobedecessem! Como diriam os gurus da não-violência, leis injustas não deverão ser acatadas.
As equipes de projeto deveriam aprender a desobedecer, porque a maioria dos diretores tinham herdado uma cultura feita de autoritarismo. E porque a maior parte dos normativos que regiam o funcionamento das escolas eram desvarios instrucionistas.
Falar-vos-ei deste e de outros obstáculos à mudança. Longe ia o tempo de seres solitários, providenciais e insubstituíveis os derrubarem. Deveríamos evitar gerar dependência em outrem, para que não nos tornássemos (supostamente) “imprescindíveis”. Era preciso aprender a desaparecer, a fomentar autonomia. Nos projetos humanos em que participávamos, o exercício da autonomia não pressupunha independência, mas interdependência. Se, em 2020, o Pedro voltasse às margens do Ipiranga, não gritaria “Independência, ou morte”. Diria: Interdependência… ou morte!
Por: José Pacheco