Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCXVI)

cidadania

Nova Bassano, 11 de dezembro de 2040

Encontrei numa velha pen drive um ficheiro com várias notícias de uma mesma semana do dezembro de 2020.

Na rotineira violência da favela, o ajudante de pedreiro Alexsandro, chorava a morte da sua filha Emily e da sua sobrinha Rebeca:

“Tô enterrando a minha filha, que não viveu nada”.

As duas crianças foram mortas em tiroteio na Baixada Fluminense. Emily, de quatro anos e Rebeca, de 7, brincavam na porta de casa quando foram atingidas por balas. Foram sepultadas, uma ao lado da outra. Alexsandro fechou o túmulo com as próprias mãos.

Na chamada “estrada da morte”, que tantas vezes percorri com o credo na boca, um ônibus não autorizado para transporte de passageiros caiu de um viaduto. Morreram vinte pessoas.

Numa sociedade doente, desgovernada, cativa da inversão de valores, reinava o caos da incúria e da má educação. Escasseava o exercício da cidadania.

Nas escolas, havia aulas de “educação para a cidadania”, quando se deveria educar no exercício de uma cidadania plena. As escolas cívico-militares praticavam um civismo de caserna. A cidadania instrucionista causava a destruição da Amazônia. A cidadania ensinada na universidade não obstava a que estudantes estuprassem colegas, durante o trote. Havia projetos de “educação cidadã” financeira, para o trânsito, para a saúde. Mas, a inadimplência se generalizava, as estradas eram cemitérios e a covid-19 voltava na segunda vaga. E uma “cidadania armamentista” contribuíra para o assassinato da Emily e da Rebeca.

No início deste século, o meu amigo António Nóvoa redigiu um artigo com o título “A educação cívica de António Sérgio vista a partir da Escola da Ponte (ou vice-versa)”. Com uma dedicatória: “Para todos os que têm feito e continuarão a fazer a Escola da Ponte”. Eis o que o António escreveu, a partir da obra do Mestre António Sérgio:

“É grande a nossa tendência para “adormecer a própria mente com noções vagas, sentimentais”. Tem sido uma das pechas do debate sobre a educação: a frase feita, o gesto fácil, a solução pronta-a-servir, a banalidade transformada em eloquência, em vez do estudo aturado, da reflexão sobre as experiências concretas, da análise sistemática e informada (…) Sérgio critica a albarda da resignação fomentada pela escola e afirma a necessidade de uma formação cívica prática: «a educação cívica meramente teórica parece um ensino de esgrima em que se não empunhasse uma arma, ou uma aprendizagem de piano em que os dedos se não mexessem: é um absurdo”.

E deste modo concluía o artigo:

“Fazer uma escola é, também, ser capaz de suster a indignação por tanto disparate que se escreve e manter um rumo que se alimenta da esperança enquanto necessidade ontológica, de uma esperança que, nas palavras de Paulo Freire, precisa da prática para se tornar concretude histórica. A Escola da Ponte, é uma escola extraordinária. É uma escola pública como as outras, com alunos e professores iguais a muitos outros. E com esta matéria-prima se tem vindo a fazer, graças a um trabalho metódico, persistente e coletivo, uma escola notável.

Júlio Cortázar escreve que uma ponte só é verdadeiramente uma ponte quando alguém a atravessa. Os colegas da Escola da Ponte já fizeram muitas travessias. Pelo deserto ou pela floresta, eles sabem que não estão sozinhos nas travessias que têm pela frente.”

A Ponte, de que o amigo Nóvoa falava no início do século, foi inspiração para aqueles educadores que, no dia 16 de dezembro de 2020, anunciaram o advento de uma nova educação. Eles sabiam que não estavam sozinhos na prática de uma educação verdadeiramente cidadã.

 

 

Por: José Pacheco

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *