Certificados… Quem não sonha em conseguir um? Chame pelo nome que quiser: diploma, currículo, certificado, comprovante de conclusão, etc. Trata-se de um papel que atesta categoricamente que você adquiriu um determinado conhecimento e está no mesmo nível que outros, que possuem o mesmo certificado.
Qualquer funcionário de RH sabe bem que diplomas e currículos não correspondem em nada com a realidade dos funcionários contratados. Calma! Eu não vou dizer que estudar e conseguir diplomas não tem importância. Minha proposta é refletir sobre o sistema escolar.
Imagine o Cláudio, um aluno de 6 anos que entrou no Ensino Fundamental. Após cinco anos Cláudio conclui a primeira etapa do Ensino Fundamental e recebe um certificado de conclusão. Com esse certificado, Cláudio e seus colegas de turma serão tratados como pessoas que estão plenamente alfabetizadas e que desenvolveram as competências que todos os alunos e alunas brasileiros precisam ao completarem 11 anos. Felizes com o rendimento escolar de seu filho, sua mãe e seu pai decidem que sua educação merece um investimento, então eles convencem Cláudio a tentar um concurso para uma escola “forte” e concorrida. Para isso, Cláudio deverá fazer uma prova para saber se tem condições de estudar neste novo e “poderoso” colégio, que aumentará as chances de Cláudio “ser alguém na vida” ou “ter sucesso”.
Como assim? Se Cláudio concluiu o Ensino Fundamental 1 e recebeu um certificado, isso significa que está apto para entrar em qualquer escola de Ensino Fundamental 2. Não há necessidade de provas para avaliar se ele realmente está preparado. Contudo, o sistema não é esse e, por mais absurdo que isso pareça, esta prova nada mais é do que isto:
Coloque todos os professores deste colégio “forte” e concorrido na frente de todos os professores que o Cláudio teve do 1º ao 5º ano e eles dirão:
– Nós não confiamos no trabalho de vocês! Nós não acreditamos que esse certificado seja real! Nós achamos que vocês não fizeram um trabalho tão bom assim na educação do Cláudio, então nós decidimos nos certificar (ops, desculpe pela brincadeira) de que ele é realmente um aluno de Ensino Fundamental 2, aplicando uma prova que NÓS elaboramos para testar as capacidades dele.
Para que serve o certificado de Cláudio? Para quase nada.
Acontece que Cláudio faz a prova e consegue entrar no tal colégio. Lá ele estuda com afinco e após quatro anos, Cláudio conclui o Ensino Fundamental 2 e recebe… Sim, isso mesmo, um novo certificado. Com esse papel em mãos, aquele anterior perde qualquer valor. Cláudio agora tem o FUNDAMENTAL COMPLETO e passa a circular entre todos aqueles que conseguiram tal feito.
Felizes com a realização de seu filho, o pai e mãe de Cláudio decidem que ele deve cursar o Ensino Médio em uma escola de excelência, pois isso trará maior probabilidade de Cláudio ser uma pessoa de “sucesso” e realizar seus sonhos.
Novamente Cláudio se vê diante de um concurso. Para ingressar na moderna e equipada escola de Ensino Médio, ele terá de fazer uma prova, pois… Seu certificado de conclusão de Ensino Fundamental 2 não tem valor algum. Para os professores desta impressionante escola, todo o trabalho que os professores do Cláudio tiveram do 6º ao 9º ano não é confiável e precisa ser realmente verificado. Provavelmente aqueles professores foram bonzinhos demais e passaram Cláudio por amor e não porque ele estava apto a avançar ano após ano.
É lindamente triste como os professores das faixas etárias maiores não respeitam o trabalho daqueles que iniciaram a educação dos seus alunos. E é igualmente triste como os professores aceitam terem seu trabalho questionado dessa forma. Não importa o que acontece no 6º, 7º e 8º anos. Importa apenas concluir o 9º ano para que ter um diploma, ainda que esse diploma não garanta muita coisa.
Cláudio faz a prova e passa. Quanta felicidade! Durante 3 anos Cláudio se vê desafiado pelos novos conteúdos das ciências fracionadas. A matemática se transforma em aritmética, geometria e trigonometria. As ciências se multiplicam em física, química e biologia e estas novamente se segmentam em fisico-química, física elétrica, física mecânica, química orgânica, química inorgânica, genética, biologia humana, etc… A geografia se multiplica em geografia política e geografia física… A história se abre para história do mundo e história do Brasil… A Língua Portuguesa se torna uma tríade: redação, literatura e gramática.
Cláudio olha para o Ensino Médio e pensa que não vai dar conta, mas foram muitos sacrifícios até ali e não se ganha nada na vida sem esforço, então Cláudio atravessa o Ensino Médio tendo sempre em mente uma palavra: ENEM.
No dia de formatura de Cláudio, ele chora ao receber seu diploma de conclusão do Ensino Médio. Seus pais o abraçam com alegria. Agora os outros dois certificados antigos de Cláudio não valem mais nada. Ele faz parte do seleto grupo daqueles que tem o Ensino Médio completo.
Cláudio decide fazer a prova do ENEM para realizar seu sonho de ser arquiteto. Infelizmente os professores da universidade onde Cláudio deseja estudar não confiam muito na validade do diploma que ele possui. Aquele pedaço de papel diz que ele completou os requisitos e realmente não tem mais nada a aprender no Ensino Médio, mas os professores do Ensino Superior não concordam com o papel que foi assinado pelos professores do Ensino Inferior, ou melhor, Ensino Básico (assim fica menos ofensivo).
Cláudio passou 3 anos se preparando para o ENEM, mas isso não significa nada. Somente uma prova realizada em dois domingos, durante mais de 10 horas provará que Cláudio realmente não está mentindo, ou melhor, que seus professores, todos eles do 1º ao 9º ano, realmente estão falando a verdade.
Cláudio faz a prova, consegue uma vaga e se forma bacharel em arquitetura. No dia de sua formatura ele segura seu diploma de arquiteto nas mãos e chora ao lado de outros colegas, enquanto invalida todos os outros certificados anteriores. Agora nada mais importa. Cláudio faz parte do seleto grupo daqueles que tem diploma de Ensino Superior. Contudo, Cláudio demora a conseguir seu primeiro emprego como assistente de arquiteto, afinal, mesmo tendo um diploma de bacharel em arquitetura, a empresa onde Cláudio trabalha não acredita que ele tenha conhecimento suficiente para ser um arquiteto pleno. Antes disso ele precisará ganhar experiência, fazer trabalhos burocráticos, “mostrar serviço”, provar que é capaz. Isso seu diploma não diz. Apenas a convivência no trabalho pode garantir que seu diploma fala a verdade.
20 anos se passam e encontramos Cláudio. Desistiu da arquitetura e agora abriu uma cafeteria com sua esposa, um sonho que ele nutria desde os 17 anos, mas que na correria dos diplomas não encontrava espaço para existir. Depois de passar por 4 empresas e perceber que não tinha diversas habilidades para ser criativo, para trabalhar em equipe, para aguentar as porradas da vida, sem dominar os conhecimentos da economia doméstica, o que quase o levou à falência, Cláudio olhou um dia para seu diploma e não conseguiu ver sentido naquilo. Hoje Cláudio guarda todos os seus certificados em uma pasta de plástico dentro do armário e nem lembra deles, pois acorda cedo para preparar deliciosos cafés para seus clientes. Cláudio gostou tanto desse negócio que até pensou em estudar mais e está fazendo cursos de barista (especialista em cafés de qualidade), pois quer melhorar seu negócio. Com mais de 40 anos, Cláudio diz para um amigo seu de faculdade, enquanto compartilha um café:
– Me sinto começando do zero, Paulo. Tanta coisa para aprender… Estou adorando!
O teatro de mentira dos certificados continua levando crianças e jovens a acreditarem que folhas de papel realmente determinam quem eles são, enquanto empresas do mundo dão cada vez menos importância aos papéis e investem em treinamento de pessoas cheias de diplomas e com pouca experiência de vida.
Felizmente essa crítica não é minha. O texto que escrevi foi uma situação hipotética que eu criei, mas quem me inspirou foi Lauro de Oliveira Lima, em seu livro “Para que servem as escolas?”, no capítulo 8 – O sistema suspeita de si mesmo. Como educadores, precisamos lembrar que a educação é para todos! PARA TODOS! Não sei quais caminhos meus alunos irão trilhar, mas sei que apenas 4 de cada 30 terá um diploma de Ensino Superior. Os meus outros 26 alunos também merecem uma educação que os prepare para a vida, para a cidadania, para o trabalho e não apenas para o ENEM. Por que, se eu insistir em preparar todos os meus 30 alunos para o ENEM, estarei sendo antiético.
Que a educação faça sentido. Que os alunos tenham seus sonhos respeitados. Que os professores e pais não imponham seus sonhos aos alunos. Que os pais compreendam que educação não é apenas ensino. Por uma educação do século XXI que transforme nossa sociedade! Viva a educação!
Por: André Luis Corrêa