Santo Antônio da Patrulha, 26 de agosto de 2040
Oitenta e quatro meninas de dez a catorze anos deram à luz em São Paulo, no período de três meses. Havia um silêncio cúmplice perante essa e outras violências, que encobria os vinte e seis mil partos anuais, de crianças entre dez e catorze anos. Havia um avanço de um fundamentalismo hipócrita, encorajado por discursos e ações que reforçavam o preconceito e a misoginia. Proteger as crianças era dever da família, da sociedade e do Estado, mas a sociedade do tenebroso tempo da pandemia falhava em todas as esferas de proteção.
Essa situação suscitou recordações de há meio século. Muitas crianças, que não frequentavam a Escola da Ponte nos visitavam, no seu contraturno de escola. Os nossos alunos os acolhiam e com eles partilhavam aprendizagens. Certo dia, observei uma dessas crianças aproximando-se do prédio da Ponte. Parou na porta sempre aberta, espreitando. Convidei-o para entrar.
Observando as crianças, desejávamos que a grega scholé se fizesse permanente. Enquanto brincavam, evidenciavam o respeito a regras, aprendiam a conviver. Aprendiam que a sua liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro, mas que começava onde a liberdade do outro começava. Aprendiam a ser, se reconheciam reconhecendo o outro. Aprendiam a não estar sozinhos.
Durante cerca de um mês, observei o modo como aquele menino interagia com os nossos alunos. Com preocupação, me apercebi de que, apesar de bem acolhido, quase não falava e não fazia amigos. Quando se tentava chegar à fala com ele, esquivava-se. Pensei em ir à sua escola, conversar com a sua professora, manifestar-lhe a minha preocupação e me disponibilizar para com ela colaborar. Não cheguei a fazê-lo. Essa criança se suicidou com veneno de escaravelho.
A tragédia foi motivo de profunda reflexão.Ao tentar identificar os motivos que uma criança pudesse ter para pôr fim à sua vida, identificamos alguns “solitários” entre nós. Perante tristes silêncios de alunos nossos, decidimos criar dois dispositivos – o tutor e a caixa dos segredos – canais de comunicação, que abreviaram situações de discreto sofrimento. Se as escolas eram arquipélagos de solidões, lançamo-nos num anular de insularidades.
Quando encontrávamos um recado depositado na “caixa dos segredos”, de imediato combinávamos uma amena conversa. Os autores dos recados sempre aceitaram partilhar o “lugar de estar sozinho” com o seu tutor. E tinham dado um nome original ao meu “lugar de estar sozinho”. Por ser o professor mais antigo, chamaram-lhe a “pedra da idade da pedra”. Nela sentado, muitas mágoas de infância ajudei a enxugar, em conversas de incondicional e amorosa escuta. Muitos dramas e pesadelos ajudei a mitigar e a dissipar.
Como escrevi nas cartinhas para a Alice, “Calhou de uma gaivota pousar sobre a pedra da idade da pedra, uma pedra que não era igual a outras pedras, uma pedra detentora de inefáveis dons, de uma clara magia, onde se partilhava segredos. E o coração das gaivotas sossegava. Sempre que uma gaivota nela pousava e cerrava os olhos, subia da pedra da idade da pedra um suave perfume e eflúvias meditações se produziam. De imediato, do recanto mais íntimo de um lugar onde os homens supõem não haver lugar para a imaginação, assomavam suaves gestos de solidariedade de humanos pássaros”.
Sempre disponíveis, carinhosos, pacientes, esses “humanos pássaros” – seres a que se costumava dar o nome de professor – com singelos gestos, afastavam preocupações e medos, ajudavam as crianças a reconstruir futuros, a não estarem sozinhas.
Por: José Pacheco