Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCIV)

Sobradinho, 30 de agosto de 2040
Querida Alice, numa cartinha de há trinta e nove anos, celebrava o teu nascimento e assim dizia:
Raros serão os seres humanos que entendam a sutil sapiência dos pássaros. Mas eu sei que tu, querida Alice, compreenderás a lição. Sei que teus caminhos se hão-de cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sei que não estás condicionada por sentidos obrigatórios, nem contaminada pela vertigem das ultrapassagens. Saberás inventar venturosos mapas, respeitando os que optarem por inventar os seus. Esta ideia da divergência de percursos, sejam eles itinerários paralelos ou alternativos, é tão antiga como a imposição das veredas por onde correm à desfilada e em atropelo jovens pássaros aprendizes da perseguição de fugazes pódios e honrarias.
No dia do teu décimo nono aniversário, convidei educadores para conversar sobre a criação de uma rede de comunidades de aprendizagem. Fraternalmente e definitivamente os convoquei, pois estava mais do que provado que a escola da aula fora uma invenção diabólica. Já Férrière o dissera. Contava esse eminente pedagogo que, um dia, deu o diabo uma saltada à terra e verificou, não sem despeito, que ainda cá se encontravam homens que acreditavam no bem. O diabo concluiu que as coisas não iam bem e que se tornava necessário modificar isso. E disse consigo: ‘A infância é o porvir da raça; comecemos, pois, pela infância”. Mas mudar a infância, como? Teve uma ideia luminosa: criar a escola. E, seguindo o conselho do diabo, criou-se a escola. “A criança adora a natureza: encerraram-na dentro de casas”.
Aqueles que, na Rede de Comunidades de Aprendizagem, assumiram o “desencerramento” da infância seguiram recomendações de grandes humanistas desse tempo. Do Mia Couto, quando propunha: “cada um de nós faça a sua parte, para que se dê um novo reencantamento do mundo, a começar por nosso mundo interior”. E, também do Papa Francisco, que apelava ao “renovar a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva”:
“É necessário acelerar esse movimento inclusivo da educação para combater a cultura do descarte, criada pela rejeição da fraternidade como elemento constitutivo da humanidade”.
Se Papa João dissera que a Igreja era o “Povo de Deus em Marcha”, o Papa Francisco nos convidava a reinventar a Escola, a colocar a “Pessoa na Casa Comum”, chamada a viver e a reencontrar o dom da fraternidade, num novo tipo de relação humana a que chamávamos “aprender em comunidade”.
Querida neta, parabéns pelo teu aniversário! E por te teres juntado àqueles que contribuíram para que fosse possível humanizar o ato de aprender. Termino esta cartinha com palavras escritas no tempo em que nasceste.
Esse agosto de há vinte anos, foi tempo de “tensa expectativa, tempo de alguma ambiguidade, de apreensão, mas também de teimosa confiança. Como pombas com ramos de oliveira atravessados nos bicos, as aves aprendizes estabeleciam laços, lançavam alicerces das pontes, que levavam dentro de si, nas faldas das margens a unir. Não importava a tumultuosa torrente que ameaçava fazer ruir as frágeis fundações. Não importava que horrendas fauces assomassem nos itinerários construtores. O medo não era sentimento que se cultivasse. Aliás, uma das gaivotas encontrou recados de despedida deixados na escola das aves. Um desses recados de pássaro aprendiz dizia: Hoje, sinto-me quase feliz, à beira de voar sonhos novos. Medo não sinto. E até o inesperado me fascina. É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sinto, porque não parto sozinho”.

Por: José Pacheco

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