Campos Belos, 1 de setembro de 2040
A cartinha do dia 30, terminava com recado de despedida deixado na Ponte por um visitante: “Medo não sinto, porque não parto sozinho”. Porém, no “regresso às aulas”, esses sonhadores raramente concretizavam o projeto sonhado, pois se confrontavam com o primeiro dos obstáculos à mudança: a cultura profissional dos professores.
Quando jovem, trabalhei numa escola dos cafundós de Portugal, aldeia rural, onde ainda não tinha chegado a energia elétrica. Quarenta jovens almas para cuidar, dentro de um barracão de chão de terra colado a uma corte de gado. Um frio de zero graus penetrava pelos buracos da porta e, tiritando, nos encolhíamos junto a uma improvisada lareira feita de gravetos, que as crianças apanhavam pelo caminho.
Sempre que o sol aparecia, se cumpria o preceito do Comenius: não levávamos a árvore para a escola; levávamos a escola para debaixo da árvore. Não tardou que a comunidade se apercebesse de que os seus filhos aprendiam tudo o que, antes, não lhes tinha sido ensinado. E que aprendiam a ser.
Em seis horas diárias, fazia um vaivém entre a minha casa e a escola. Apeado do ônibus, atravessava uma mata. Parava numa clareira, para almoçar uma “quentinha”. Num bucólico ambiente, jogava migalhas aos pássaros, partilhando o meu repasto. Durante 179 dias, assim foi. Até que, certo dia, o despertador não funcionou e… perdi o ônibus.
Consegui uma carona, que me levou, diretamente, para a escola. À minha espera estava o Padre Abreu. Visivelmente preocupado, me pediu para o acompanhar:
“Venha comigo, professor, venha comigo!”
Levou-me para a residência paroquial, trancou a porta e perguntou:
“Você veio pela mata?”
“Não”.
O padre ajoelhou-se e exclamou:
“Obrigado, meu Deus! Obrigado!”
Abraçou-me e disse:
“Professor Zé, você sabe que os pais dos seus alunos muito o estimam. Mas também sabe que a aldeia é muito católica, não sabe? Pois, ontem, uma professora sua colega, talvez por inveja, fez constar que você pôs duas crianças nuas, para explicar como nasciam as pessoas. Alguns pais acreditaram no boato e foram esperá-lo na mata. Levavam facas e machados. Disseram-me que o iam matar.”
Não voltei para casa. À noite, numa reunião com os pais, tudo se esclareceu. Dois alunos – o Batista e a Margarida – deram testemunho. Conscientes de terem cometido um erro, os pais me pediram mil desculpas. Queriam ir à casa da professora autora do boato, para lhe aplicar represálias. Pedi-lhes que não o fizessem e que a perdoassem.
A partir desse dia, aquelas modestas famílias expressaram gratidão, oferecendo-me o melhor que tinham: ovos de galinha caipira, chouriços caseiros, couves da horta. Careciam de alimento, mas, se matavam o porquinho, obrigavam-me a aceitar o melhor bocado de carne.
“Leve, senhor professor! Leve, que não nos faz falta!”
Queridos netos, só num dos 180 dias desse ano letivo não atravessei a mata. Se eu não tivesse perdido o ônibus… vós não existiríeis. Muitos anos decorridos sobre o “milagre” de ter escapado de uma morte prematura, fiz o lançamento de um livro na Escola da Ponte. Após a apresentação, fui escrevendo dedicatórias nos livrinhos de quem as solicitava. Uma senhora colocou o seu exemplar sobre a mesa e pediu que o autografasse.
Quando disse o seu nome, eu comentei:
“Tive uma aluna com esse nome. Uma aluna que me salvou a vida!”
E aquela senhora assim falou:
“Não me reconhece, Professor Zé? Sou a Margarida! Fui essa sua aluna. Vim matricular o meu filho na sua escola.”
PS: Preciso confessar-vos que os velhos choram por tudo e por nada… e que a emoção me possui, enquanto fecho esta cartinha.
Por: José Pacheco