Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CXCIV)

Vargem Grande, 21 de agosto de 2040

Voltei à leitura de crônicas publicadas há quase um século por uma poeta, que, pelos seus dezesseis anos, se fez professora. E, se na cartinha anterior evoquei um dos heterônimos pessoanos, nesta eu registro um episódio semelhante àquele que foi protagonizado por Cecília Meireles.

No ano anterior à sua morte, Fernando Pessoa submeteu a concurso a sua obra maior: “Mensagem”. Essa obra prima foi considerada “segunda categoria” pelo júri indicado pela ditadura salazarista. Um obscuro poetastro conquistou a “primeira categoria”. Enquanto isso, Cecília candidatava-se à cátedra de literatura da Escola Normal. Foi preterida, porque a sua tese sobre liberdade individual não agradou ao júri. A subcultura medieval do ditador Salazar, como o submundo do negacionismo, infligiam torpes vinganças àqueles que se rebelavam.

Contemporâneo da Cecília, o pedagogo Celestin Freinet, nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, tomava consciência de uma das origens do conflito: “os professores foram tão longamente condicionados pela velha pedagogia que permanecem incapazes de se libertarem de práticas de que conhecem, por experiência, os perigos”.

Ao longo de duzentos anos, a “velha pedagogia” havia gestado uma sub-humanidade. Os “perigos da velha escola” se revelavam, ciclicamente, sempre que uma crise do sistema (ou um vírus) colocava no poder políticos com aparência de gente. No mesmo ano em que Freinet lançava o seu aviso, a “velha pedagogia” ajudava a eleger… Adolf Hitler.

Na década de 30, em verso e numa prosa corrosiva, Cecília expressou a sua rebeldia. Nas páginas dos jornais do Rio, pugnou por uma efetiva renovação educacional, ousou romper tabus de uma sociedade moralmente doente, denunciando um regime, que invocava “a Liberdade como sua padroeira, enquanto submetia o povo a “velhas situações de rotina, de cativeiro e de atraso”.

Quase um século decorrido, as crônicas da Cecília ganhavam atualidade. O rumo da educação da “patriazinha que não rimava com mãe gentil” do Vinícius era merecedora do mesmo comentário da Cecília às reformas do Capanema. A poeta e professora pugnava por ”uma reforma de finalidades, de democratização da escola, todas essas coisas que a gente precisa conhecer antes de ser ministro da educação”. Numa prosa mordaz, assim comentou uma formação de professores semelhante àquela que, em 2020, ainda se fazia:

“Que lhes valeu todo o curso que fizeram? Em vão, beberam a caudalosa erudição dos catedráticos imponentes, fizeram provas escritas de inúmeras laudas. Palavras, palavras, palavras, que o vento levou. As aulas de psicologia e pedagogia ficaram geladas nos livros; as outras não levaram em si nenhum gérmen dessas duas, que são indispensáveis a quem vai ser professor. Pobres alunas, que não tiveram quem as orientasse a tempo! Depois de tanto trabalho, terão de fazer, por si mesmas, toda a cultura técnica que ninguém pensou ou lhes pode fornecer no momento devido”.

Cecília contestou uma Escola reprodutora de iniquidades, feita de burocracia e liderança toxica, que perdera todo o sentido. Denunciou uma construção social feita de salas de aula habitadas por solidões, que sobrevivia qual cadáver adiado suportado em projetos paliativos. E colocava em verso o seu apelo: “Vem, retira as algemas dos meus braços, porque a vida só é possível reinventada”.

Cecília bem mereceu os versos que o Manuel Bandeira lhe dedicou: “Cecília, és tão forte e tão frágil / Como a onda ao termo da luta / Mas a onda é água que afoga / Tu és enxuta”.

 

Por: José Pacheco

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