Santo Antônio do Descoberto, 23 de julho de 2040
Queridos netos, nos idos de 2000, entreguei-vos um montinho de cartas, com a recomendação de que, quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens vos permitisse, as irieis ler e sobre elas refletir. Na última das cartas, disse-vos que ela não seria o fim das estórias. Retomei a sina de avô contador, quando um vírus nos remeteu para o único modo de comunicar: o virtual.
Aconteceu que, por meados de julho do distante 2020, mais de oitenta mil vidas brasileiras haviam sido ceifadas pelo vírus. Os técnicos de saúde apelavam ao lockdown, à paralisação dos fluxos de deslocamento, a que as pessoas não se aglomerassem, enquanto mesquinhos interesses economicistas reclamavam o… regresso às aulas.
Também havia quem preferisse outro refrão, o “voltar à escola”. A que “escola se refeririam? Lá do Chile, o amigo Juan assim a definia: Quando se diz ”uma escola”, em geral, se refere a um lugar onde há salas de aula, turmas, um lugar onde se dão as aulas.. Mas o que caracteriza uma escola não são estas coisas. O que caracteriza uma escola é a sua forma particular de existir. O tipo de escola é dado pelo fluxo de interações entre as pessoas. Notemos que o fundamental nessa noção de escola é a ideia de que os seus elementos constituintes não são objetos, mas sim pessoas (…) o que permite que se pode dizer que é uma escola é dado pelo padrão de interações intersubjetivas. O fenómeno escola emerge do padrão de interações humanas.
O Juan ocupara postos de elevada responsabilidade em ministérios e na UNESCO. A sua sabedoria era inquestionável. Os desgovernantes da educação talvez não tivessem lido os seus livros e, por isso, impusessem o “regresso às aulas”. Entretanto, neste lado da cordilheira, vozes avisadas se levantavam. A minha amiga Denise manifestava a sua preocupação:
“Olá, meu caro amigo! Não sei se você lembra de mim. Você foi duas vezes ao nosso Colégio, uma cooperativa de educadores e que acabou… acabando”.
O projeto dessa excelente educadora tivera o mesmo destino de muitos outros projetos com potencial inovador. Mas a Denise não era pessoa de desistir:
“Você pode ajudar divulgando a campanha, ajudar a divulgar entre os professores”.
E juntava ao e-mail o “Manifesto pela Educação sem Medo”, descaradamente baseado no Manifesto Antropofágico do Oswald de Andrade, porque, cem anos decorridos, o essencial desse Manifesto mantinha atualidade:
Só o medo nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos. Ter ou não ter. Essa é questão! Contra todos os medos! E contra a mãe da Hipocrisia. Só interessa que eu não me perca. Estamos fatigados de todos os medos postos em drama. Medo de perder o emprego. Medo da diretora. Medo do dono do colégio. Medo de perder minhas gratificações. Medo de viver. É chegada a hora de perder o Medo e dizer Não!
Por que razão se deveria voltar para um prédio de escola, sem garantias de preservação da vida? Os professores deveriam “regressar às aulas”, ou partir para uma nova educação?
Metaforizando… foi natural, doce, terno, o modo como a escola do vosso pai-professor vos acolheu. Mas, para que pudésseis ir à escola sem medo, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de betão, vigiados, subvivendo.
Por: José Pacheco