Primavera do Leste, 13 de agosto de 2040
Há quase cem anos, na cidade de Socorro, as percursoras classes experimentais da Maria Nilde eram sementes do que viria a ser o Vocacional. Em boa hora o Luciano se apercebeu do valor desse projeto e convidou a Nilde para participar da comissão de educadores, que, nos idos de 1960, concebeu esse projeto.
O amigo Lauro afirmou que o Vocacional foi a experiência mais significativa na educação pública brasileira até à década de 1970. Em São Paulo, Americana e Batatais se concretizava a pesquisa, os projetos de intervenção na comunidade, a educação artística, o trabalho em equipe, os estudos sociais, num currículo integrado de escola comunitária. Nilde introduziu a prática da auto avaliação e substituiu notas por conceitos. Na base da construção do currículo estava a realidade social, características culturais e socioeconômicas do lugar.
Em São Paulo, o estudo noturno criou oportunidades para jovens trabalhadores do bairro, a quem a escola tradicional havia negado conhecimento. Mas, o projeto nem uma década durou. Nilde resistiu à “crise de 65”, quando negou a matrícula “ao jeitinho brasileiro” de um filho de funcionário de confiança do secretário de educação. Foi demitida. A mobilização de professores, funcionários e pais de alunos, em assembleias na capital e no interior, forçaram o governo a reconduzi-la no cargo de coordenadora. Porém, à semelhança de projetos destruídos, já no início deste século, os Vocacionais do século passado estavam sujeitos à ameaça, sujeitos à repressão e condenados à extinção.
O “AI-5” impôs limitações. Nilde contestou-as. Policiais e militares invadiram os ginásios vocacionais. Nilde e os seus professores foram presos. A ditadura impôs a sua aposentadoria, crente de que a impediriam de agir. Nilde fundou uma assessoria de projetos, pesquisa e planejamento de ação comunitária e educacional, interveniente na defesa dos direitos humanos e dos perseguidos políticos do regime militar… e voltou à prisão.
Na década de 1970, já professora da PUC, Nilde implantou um programa para mulheres de baixa renda, nas favelas de São Paulo. Essa e outras iniciativas dotaram-na de formação experiencial, que lhe permitiu elaborar uma extraordinária tese de doutorado.
Visitei os lugares dos extintos ginásios vocacionais. Os jardins de sessenta tinham sido substituídos por muros e estacionamento de carros. O que restava dos edifícios tinha janelas ornadas de grades.
Nas minhas deambulações pelo chão das escolas brasileiras, me surpreendia o fato de, nos cursos de pedagogia, não se falar da Nilde e de outros egrégios pedagogos brasileiros. Nunca encontrei um livro de Lauro Lima nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Nunca encontrei professores que conhecessem a estória dos Vocacionais. Por isso, em muitos lugares a recontei.
Em 1999. com o seu desaparecimento da insigne educadora, a memória do projeto se esvaiu. Mas, ressurgiu no distante mês de agosto de 2010. Ex-alunos dos Vocacionais organizaram-se em associação. Acompanhei-os em emocionantes encontros e os recordo com saudade. Eram brasileiros conscientes de que o espaço público da educação ultrapassara a exiguidade das paredes da sala de aula e que essa mutação parecia ser imperceptível para a maioria dos professores. As medidas de política educacional continuavam cativas de vícios institucionais jamais questionados. Nilde questionou!
Por: José Pacheco