São Gabriel da Cachoeira, 24 de agosto de 2040
Na porta do banheiro de uma famosa confeitaria, estava pendurado um dístico: “Por favor, não urine no chão, nem no cesto dos papéis”. O inusitado apelo avivou memórias, devolveu-me a indelével imagem do Cassiano, cábula e decano dos alunos, urinando contra as paredes dos sanitários da sua escola, incitado pela algazarra de outras boçais criaturas. Decorridos tantos anos, as suas estridentes gargalhadas ainda ecoam, violentas, nos meus ouvidos.
No início de 2020, pouco antes do surgimento da covid-19, visitei uma faculdade de pedagogia. No hall de entrada, estava afixado um imponente cartaz: “Salvemos a Amazónia”. Em letras pequenas, apelava-se a uma intervenção cívica que pudesse atenuar a sanha destrutiva dos que dizimavam a floresta. Em letras ainda menores, uma nota: “Ao poupares papel, estarás a ajudar-nos nesta campanha”.
Segui pelos corredores dessa faculdade. Cartazes caídos dos expositores eram pisados por professores, alunos, funcionários, por quem por ali passava. Desemboquei num bar inundado de algazarra e lixo, líquidos não identificados e restos de guardanapos pelo chão. Na sala dos professores, observei um cesto atafulhado de papel. As folhas estavam impressas apenas de um lado. Metade das folhas estava em branco, mas estavam amarrotadas, sujas, inutilizadas.
Evoquei uma escola que eu bem conheci, onde os alunos aproveitavam o papel até ao último milímetro e colocavam na “caixa das folhas de rascunho” aquelas folhas que só tinham sido utilizadas de um lado. Recordei o gesto de um pai que, certo dia, foi oferecer a essa escola duas resmas de papel, porque “tinha visto o filho a escrever num papel usado e pensava que a escola estava a passar por dificuldades”. Quando lhe foi explicado, esse pai entendeu que a prática de reutilizar papel não se ficava a dever a dificuldades, mas à criação de hábitos, comportamentos, atitudes. Ficou sabendo que o seu filho tinha adquirido competências de educação ambiental.
Competência é o saber em ação e, nas minhas deambulações pelas escolas, escutava desabafos de professores que, sem descurarem o bom desempenho dos seus alunos no domínio cognitivo, também se preocupavam com o atitudinal:
“As nossas crianças descobriram ninhos de morcegos nas entranhas de uma velha árvore, por detrás da escola. Com elas, fizemos um projeto, para conhecer a vida dos morcegos e cuidar da árvore que era a sua casa. Chegou o “Dia da Árvore” e nós lá fomos com os alunos para uma tarde de observação. Quando chegámos ao lugar onde deveria estar a árvore, só vimos restos de ramos cortados e raízes arrancadas. Diga lá, amigo Zé, se nós não devemos estar desanimadas!
“O que aconteceu?” – perguntei.
“A diretora, quando soube da descoberta dos alunos, disse que “as crianças poderiam tentar subir à árvore e cair”. E, na manhã do ”Dia da Árvore”, mandou cortar a árvore, que era a casa dos morcegos”.
Enquanto isso acontecia, em todas as salas de aula, em cartilhas iguais para todos, todas abertas na mesma página, todos os alunos, ao mesmo tempo, pintavam árvores de papel… árvores todas iguais.
Nos idos de vinte, a Amazônia sofria uma devastação sem precedentes. E os professores brasileiros pareciam alheios às causas desse desastre ambiental, mantinham-se coniventes com o holocausto educacional perpetrado pelo poder público. Não entendiam (ou os impediam de reconhecer) que reproduziam nas suas salas de aula um modelo social, causa indireta da destruição da Amazônia e responsável por outros crimes.