Lousã, 16 de outubro de 2041
Miguel Torga foi médico e poeta. Em meados do século passado, compôs um poema com o título “Ave de Esperança”. Nos idos de vinte, ele me remetia para a obra do Paulo e me ajudava a suportar a perfídia. Aqui transcrevo o poema, sugerindo que adentreis a obra desse poeta sublime:
“Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir – esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper”
Mais uma vez, o poeta glosava a esperança e a corrupção, que o Vieira colocara num sermão, em que dialogara com os peixes, por estes serem discretas testemunhas da corrupção de costumes:
“Ou é porque os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem”.
Naquele tempo, era preciso acender e manter o fraterno diálogo, que nos ajudasse a não desistir. Era preciso “aquecer as alegrias do futuro”, para colmatar a tristeza do triunfo das corrupções. Cumprindo o prometido na cartinha anterior, aqui vos deixo excertos do diálogo mantido entre a Ponte e todos quantos a interpelaram. A pergunta transcrita refere-se ao funcionamento da Assembleia da Escola, tempo e espaço de educação na cidadania, instrumento de anticorrupção.
“Vocês falam de “valores humanos não institucionalizados” propõem a construção da autonomia da criança, através dos modos de desenvolverem as atividades na escola, como uma das maneiras ‘tranquilas’ de superação da indisciplina: a criança tem a chance de construir atitudes diversas. Por isso, talvez não fique presa ao constante questionamento da ordem vigente. Pode inventar e pensar outras ordens e outros questionamentos. É mais ou menos isto?
Tive uma experiência de prática pedagógica numa a escola experimental, onde os alunos faziam assembleias. Nossa dificuldade era administrar (controlar) a enorme gama de ações e atitudes propostas pelas crianças para resolver os problemas da escola. Não tínhamos pernas para tanta solução e encaminhamento! Como vocês trabalham com as demandas da própria assembleia? Ela tem um caráter deliberativo? Executivo? Ou os dois? E, quando não conseguem dar consequência aos encaminhamentos, o que fazem? A vossa proposta parece-me muito próxima da abordagem de Humberto Maturana, quando propõe que as relações sociais só são sociais – constitutivas da sociabilidade dos sujeitos – na medida em que aprendemos a “respeitar o outro como legítimo outro na convivência.
Em que medida necessitamos, em nossos ambientes escolares (institucionalizados), de um pouco de indisciplina para superarmos rotinas, cristalizações de espaços e tempos tão comuns nos meios pedagógicos? Ou, em outras palavras, seria perguntar se vocês concordam que nem toda a autoridade deve ser exercida todo o tempo, quando falamos de educação (transformação)? Ou, ainda: Quais os limites da própria autoridade? Da disciplina?”
Na cartinha de amanhã, completarei a resposta dada por um professor da Ponte. Começava assim:
“A Assembleia é vista pelos alunos como um dispositivo de trabalho muito importante, muito significativo. Até para os alunos ditos como mais problemáticos. O aluno deverá escolher o seu próprio caminho, mas não pode confundir liberdade com falta de responsabilidade ou com desresponsabilização. A autonomia pressupõe liberdade casada com responsabilidade!”
Por: José Pacheco