Suzano, 31 de julho de 2041
Certo dia, quando conversava com o dono de uma empresa de produção de plataformas digitais, o meu interlocutor enalteceu a sua obra nestes termos:
“Professor Pacheco, veja bem onde nós conseguimos chegar! Agora, já não é o professor que diz o que os alunos devem aprender. Os alunos podem escolher”.
Pedi-lhe que me desse um exemplo. Respondeu:
“Por exemplo, há dias, eu soube que um estudante de um colégio, que trabalha por projetos e tem uma plataforma das nossas, quis estudar a raiz quadrada”.
“Por que razão ele quis estudar, nesse dia, a raiz quadrada?” – quis saber.
O empresário olhou para mim com ar de surpresa e objetou:
“Nunca tinha pensado nisso, professor. Mas não é assim que se faz na Escola da Ponte?”
O empresário não tinha pensado “naquilo”. E pensava que “era assim que se fazia na Escola da Ponte”. Estava crente de que as crianças faziam o que queriam, quando o que acontecia era que as crianças queriam aquilo que faziam, isto é, quando atribuíam significado ao objeto estudado.
Nas escolas que compravam as plataformas do empresário estava enfeitada de projetos, mas não se praticava a metodologia de trabalho de projeto. Apenas acontecia um sofisticado consumo acéfalo de currículo, porque a plataforma digital daquele bom empresário não era de aprendizagem, era uma plataforma de ensinagem
Na Ponte, os alunos não decoravam matéria contida num livro didático, ou veiculada por um professor aulista. Não se consumia um currículo pronto-a-vestir. O saber era construído, acontecia produção de currículo. A partir de sonhos, necessidades e desejos de cada ser humano, e integrando conteúdos, competências e capacidades de uma base curricular, se visava estimular talentos e cultivar os dons de cada sujeito aprendente.
Dado que um ser humano é único e irrepetível, no desenvolvimento do currículo da subjetividade era respeitada a especificidade do seu repertório linguístico e cultural, os estilos de inteligência predominantes, o ritmo de aprendizagem. Algo em tudo idêntico ao que acontecia numa escola brasileira, eu ajudei a conceber.
A tutora perguntou a uma menina:
“O que queres ser?”
Não perguntou “o que queres ser, quando fores grande?”. Esse tipo de pergunta assemelha-se a um xingamento, porque a criança é, não vem a ser.
A mocinha respondeu:
“Quero ser rapper”.
Com a jovem, se construiu um projeto de vida pessoal, se elaborou um roteiro de estudo, se fez pesquisa:
“Onde nasceu o rapp? Como se compõe um rapp? Como se declama e canta…?”
O que deveria a jovem a prender da língua portuguesa, da matemática, da educação musical e outras disciplinas?
Com o objeto de estudo bem definido, aprendeu a selecionar, a analisar, a criticar, a comparar informações; a avaliar, a sintetizar, a comunicar informação. Aos treze anos, atuou ao lado de outra rapper, na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Não aprendeu a ser rapper sozinha, mas na intersubjetividade, na comunicação entre consciências individuais, confrontando modos diferentes de pensar e de ver o mundo. Paulo Freire o dissera e, no “Eu e Tu”, Buber nos falava da capacidade do ser humano de se relacionar com o seu semelhante, da capacidade de inter-relacionamento, do diálogo, do encontro entre sujeitos e na relação entre o sujeito e objeto.
Tão longe estava aquele empresário (e muitas escolas) da essência de processos de aprendizagem! Mas, com a humildade que lhe reconheci (e no intuito de lucrar, claro!), se acercou de práticas efetivas de trabalho de projeto, concebeu (e passou a vender, claro!) plataformas digitais… de aprendizagem.
Por: José Pacheco