Palmela, 8 de setembro de 2041
Quando arriscaríamos um “golpe de asa”, quando partiríamos do que éramos para sermos algo mais? Sem prescindir do debate sobre a necessidade de mudança, quando mudaríamos?
Como vos disse na cartinha de ontem, um novo paradigma emergia no caos do setembro de vinte e um. Não sugeria um corte radical com a tradição, em nome de caprichos modernistas, porque debaixo do Sol, não havia coisas novas, mas feitas de uma nova maneira: “non nova, sed nove”.
Tudo se transformava, assumia novos contornos, mas não poderia haver mudança no fazer sem uma concomitante transformação no modo de pensar. No oitavo dia desse setembro, partimos do fazer, para uma freiriana dialética, que nos levaria da mudança para a inovação. O “paradigma emergente” tomava forma concreta na educação.
A adoção de um determinado paradigma educacional e consequente assunção de uma prática, não é neutra. Reflete a opção por uma determinada visão de mundo. Num mundo em que imperavam princípios de disjunção, um pensamento simplificador impedia a conjunção do uno e do múltiplo, anulava a diversidade. Um paradigma humanista predominava nos documentos de política educacional. Porém, na prática, pontificava o paradigma racional, a par do tecnológico, que ganhava relevância, por efeito da ingenuidade pedagógica de entusiastas do uso das tecnologias digitais.
A produção científica no campo das ciências da educação dizia-nos que o ato de aprender não deveria estar centrado no professor, nem no aluno. Que aprendíamos na intersubjetividade, mediatizados pelo objeto de estudo e pelo mundo, a partir de necessidades pessoais e sociais. Anunciava-se a aprendizagem centrada na relação, geradora de vínculos. Mas, alheada da dimensão científica, a escola da aula criara raízes culturais de difícil erradicação. E o velho modelo prolongou a sua agonia, até meados de vinte.
A vida foi para mim generosa. Apesar de me oferecer algumas passagens pela universidade, me manteve no chão da escola e isso me protegeu de “cegueiras brancas”, me ofereceu oportunidades de ultrapassar crises de profissionalidade. Bem cedo me obsequiou com a influência de três professores, que eu recordo com ternura.
O primeiro foi um professor padre, que entrou na sala e perguntou:
“O que quereis aprender?”
Desse padre-professor herdei a inquietação, que me conduziu ao primeiro passo de uma aprendizagem que também lhe fiquei a dever: a da escutatória.
Tive um professor-poeta, que me ensinou que existe beleza na arte de ensinar a aprender. Guiou-me pelas palavras que estavam para além das palavras, através das ideias que as palavras ocultam.
A mais importante das aparições aconteceria quando já eu fizera dezessete anos. Apaixonei-me pela professora de francês, logo na primeira visão – amor platónico, como é bom de ver. Era uma mulher fantástica, que se envolvia no que ensinava. Sentíamo-la presente, autêntica, apaixonada. As suas aulas – que eram mais uma espécie de liturgia – produziam em mim um efeito mágico. Eu ficava a contemplá-la, vinculado ao que ela dizia, antropofagicamente exaurindo tudo o que ela era.
Também fui professor universitário e isso me ajudou a compreender as origens de um oculto drama. Ao longo de meio século, desenvolvi vária incompetências. Uma delas foi a de prescindir da arte da oratória e a de venerar a da escutatória
Na escola da aula, fui aluno de nutrir afetos. Em tempos sombrios, com um padre, um poeta e uma professora de francês, aprendi a ver e a escutar.
Bem haja quem em mim acendeu memórias de um tempo de profundas transformações.
Por: José Pacheco