Joanópolis, 23 de julho de 2041
Se entre nós ainda estivesse, no dia de ontem, Florestan faria 121 anos. Mas, se os imortais não têm idade, ele continua presente através do seu exemplo de vida, por toda a eternidade.
“Kairós”, palavra grega, significa “o momento oportuno”, tem o mesmo sentido que “Aevum”, que significa “Eternidade”. Quando o amigo Rubem distinguia otimismo de esperança, dizia-nos que o otimismo era da natureza do tempo, enquanto a esperança era da natureza da eternidade.
O sociólogo Florestan foi deputado federal, bateu-se pela escola única, que integrasse a dispersão cartesiana, bem como pela autonomia das escolas, objeto do artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases. A sua morte precoce o impediu de votar a lei, que ajudou a compor. Darcy e poucos mais levantaram a sua bandeira, com as cedências que nós bem conhecemos e que deram aos legalistas e burocratas argumento para adiar, até aos anos trinta, a concretização de justas disposições.
A sua origem humilde moldou o teu caráter. Filho de mãe imigrante e analfabeta, começou a trabalhar como engraxate aos seis anos de idade, foi forçado a abandonar a escola aos nove anos e fez as primeiras aprendizagens sociológicas na escola da vida.
Nunca deixou de acreditar que a educação poderia ser uma experiência transformadora, que as escolas deveriam formar um sistema comunitário e que o professor deveria ser “um cidadão e um ser humano rebelde”, capaz de se opor a políticas públicas pedagogicamente desastrosas. Nas palavras de Florestan estava contido o drama, que a herança escravagista e colonialista perpetuava, a de manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas. O Brasil padecia de um enorme déficit democrático e de cultura cívica.
Florestan criticava a prática de sala de aula, da concepção do professor como transmissor do saber, e da hierarquização da gestão e dos saberes. Mas, no dia anterior ao seu centésimo primeiro aniversário, com apenas 16,49% da população no Brasil imunizada contra a covid-19, o ministro da educação pediu a alunos e profissionais da educação que retornassem às salas de aula:
“Quero conclamá-los ao retorno às aulas presenciais. O Brasil não pode continuar com as escolas fechadas, gerando impactos negativos nesta e nas futuras gerações. Não devemos privar nossos filhos do aprendizado necessário para a formação acadêmica e profissional deles. Estudos apontam que o fechamento de escolas traz consequências devastadoras “.
Não disse quais seriam os “estudos”, ou quem os fez. Talvez o ministro não tivesse consciência das consequências devastadoras da ensinagem em sala de aula. Talvez não soubesse que as escolas instrucionistas não garantiam o “aprendizado necessário”, quando culpou estados e municípios pelo fechamento das escolas, reforçando que, se dependesse do MEC, todas as escolas já teriam sido reabertas.
O ministro disse ainda que asseguraria o fornecimento de protocolos de biossegurança sanitários a todas as escolas, afirmação temerária, feita no dia em que o Brasil registrava 1.425 mortes por covid-19, elevando para 544.302 o total de vítimas da pandemia.
Nos idos de vinte, malgrado os avanços que a lei consentiu, a escola brasileira continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites. O tempo da pandemia foi oportunidade de recuperação do espírito da lei. Eu encontrava educadores que faziam das suas escolas instrumentos de emancipação. Mas o Brasil da pandemia infligia a Florestan a sua segunda morte: a da memória.
Por: José Pacheco