Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXIV)

Tavira, 28 de abril de 2041

Lewis Carroll pôs a Alice à conversa com o Gato: 

“Podes dizer-me, por favor, que caminho hei-de seguir a partir daqui?”

Ao que o gato respondeu:

“Isso depende muito do sítio aonde queres chegar.”

“Não me preocupa muito onde vou chegar, amigo gato.” 

“Então não interessa por que caminho hás-de seguir.” 

Na astrologia oriental, por acaso ou talvez não, também sou “gato” (um dos doze animais de Buda, entenda-se). Também por acaso, ou talvez não, uma Alice ansiosa, que não vivia no País das Maravilhas, me pediu ajuda:

“Desculpa estar a incomodar-te. Sei que o teu tempo é pouco, mas…Desculpa só te telefonar quando estou com problemas.”

E lá foi direta ao assunto: 

“Olha, Zé, meteram-me numa equipa incumbida de elaborar “critérios de avaliação”. É mais uma chatice por culpa do despacho 181. E, agora, com esta coisa das competências, é mais difícil saber-se quando se deve dar um 2 ou um 3, não é?” 

Esgotada a retórica da praxe, compreendi que a Alice não estava interessada em elencar critérios de avaliação, mas em se livrar dos critérios. Pedia-me ajuda para “fazer um documento”, que o ministério exigia. 

“Fui a uma reunião. Uma doutora do ministério falou de qualquer coisa como um “plano de inovação” e que nós iríamos ter autonomia. Também falou do currículo. Como se nós não tivéssemos mais nada para fazer. É papel e mais papel… Eu quero é ver-me livre da Direção do Agrupamento. Estou farta!”

“A que te referes?” – perguntei.

“É mais um projetinho do ministério. Depois, quando vier um novo governo, fica tudo como dantes. Quero é que me ajudes a fazer o documento da avaliação.”

Prometi ajudá-la a fazer o documento. Em troca, ela me falaria do tal “projetinho do ministério”. E do que se tratava?

“A doutora disse que que quem quiser fazer flexibilização, vai poder mudar 25 % do currículo.”

“Mudar o quê? Mudar como? Por quê 25%? Por que não 26% ou 100%?”

“Olha Zé, isso eu não sei. O que sei é que nos querem dar mais trabalho. Quero que me ajudes no projetinho da doutora e nesta coisa da avaliação. Tu, que fizeste o projeto da Ponte, deves saber como se faz.”

“Não fui eu quem fez a Ponte. Foram professores, pais, a comunidade. Eu apenas escrevi um rascunho de projeto, consegui reunir uma equipe e doei décadas de dedicação a essa escola. Continuo ligado ao projeto e continuarei, até morrer, mas não estou na Ponte, nem sei se a Ponte irá aderir a esse “projetinho do ministério”. Sugiro que fales com a Geni, ou a Anita.”

“Está bem. Mas ajuda-me a fazer o documento da avaliação.” 

Com beijinhos e abraços, a Alice se despediu. Desligado o celular, fui espreitar a Internet. E o que vi? 

Pouco tempo antes dos idos de vinte, quase em simultâneo, dois documentos fizeram história. Animados de boas intenções, dois secretários de educação fizeram publicar portarias: a 181/19 e a 276/19. A primeira foi publicada em junho, em Portugal. A segunda foi publicada em agosto, no Brasil. Ambas abriam caminho para novas práticas. A maioria dos professores ignorou-as. Em alguns educadores esses dispositivos legais fizeram renascer a esperança. 

Netos muito amados, consegui extrair de uma velha pen drive o texto das portarias. Convosco conversarei sobre essas e outras velharias. Me surpreende e agrada que vos interesseis por estes assuntos. Nos idos de vinte, havia quem os considerasse “uma maçada”. 

A boa educação de que os vossos filhos, hoje, usufruem não resultou de iniciativas ministeriais. A educação de que beneficiais em 2041 foi concebida à custa de muita resiliência. Os burocratas não estavam distraídos. Preparai-vos para desagradáveis surpresas.

 

Por: José Pacheco

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