Tavira, 10 de maio de 2041
Netos queridos,
Nesta data, mas há vinte anos, o vosso avô completava setenta primaveras. O corpo já se queixava de tanta canseira. O espírito, esse regredia ao tempo de criança. Isso mesmo, sentia-me criança grande, fazendo juz ao dito do amigo Rubem: “quem mata a criança que tem dentro de si não vira adulto, adultera-se”.
Voltei a Tavira, à cidade onde cumpri a quarentena de quem chegava do Brasil, em 2021. Passados os catorze dias de isolamento, na casa que foi do vosso pai, visitei Cacela Velha. Por breves instantes, contemplei um mar de memórias tão belas quanto dolorosas. Junto ao Gilão, me sentei num banco de jardim. No mesmo banco onde, cinquenta anos antes, me preparara para entrar num quartel, onde iria fazer a minha formação de atirador de infantaria.
Quase todos os professores da minha geração foram colocados na retaguarda da guerra colonial, longe de onde muitos dos meus amigos pereceram. Eu, pacifista e estrábico fui para atirador de infantaria! Pretendia a ditadura que isso fosse uma sentença de morte para quem a havia contestado ativamente. Eu poderia ter o mesmo destino do meu amigo Valdemar, se voltasse à guerra de África. A ditadura falhou a intenção. Talvez vos conte como escapei.
O Valdemar estava prestes a voltar para casa, depois de muitos confrontos travados em Moçambique. Voltava de uma “missão”. Viu uma criança em cima de uma árvore. Acenou para ela, dirigiu-lhe um sorriso afável. A criança lançou sobre ele uma granada, que e o matou. A desumanização em idade precoce produzia crianças guerrilheiras.
Em 2021, atravessei o oceano no dia em que a Revolução dos Cravos celebrava o seu quadragésimo sétimo aniversário, no mesmo dia em que, duzentos anos antes, Dom João embarcara para Portugal.
Não existia paralelismo entre as duas efemérides, talvez uma histórica oposição. Em 1974, para trás ficava uma ditadura – que este “atirador de infantaria”, com muitos outros militares, ajudou a extinguir – e tentações totalitárias. Em 1821, Dom João deixaria no Rio um rastro de burocracia, de corrupção e sementes de totalitarismo.
Em tempos de paz e abundância como aqueles que, agora, vivemos, torna-se difícil imaginar tempos de medo e autoritarismo. Se vivemos num jubiloso 2041, o devemos, em grande parte, a educadores dos idos de vinte. Possuídos pela indignação e pela coragem, idealizaram o real, realizando o ideal.
Ao longo de mais de meio século, o vosso avô gastara precioso tempo em quixotescas tentativas de mudança. Até receber premonitórias mensagens, como este lisonjeiro comentário:
“Realmente, para mim, você ‘não fez’ apenas a Ponte. Você foi a Ponte, em Vila das Aves, e, agora, prossegue em outros lugares, nesta ponte entre comunidade, professores e saberes significativos. Sua vocação é “ser ponte” e construir “pontes”.
A mãe de um aluno dava voz a outros pais, retomando demandas paradas em 2010. A degradação do “Fazer a Ponte” requeria um refazer desejado por pessoais leais ao projeto. Reuni com os órgãos de Gestão e de Direção. Busquei abertura ao novo, compreensão. Deparei com uma recusa sem fundamento. Propus o diálogo, invoquei um projeto. Devolveram-me silêncio, tal como fez a Direção da Ponte… em 1976.
Eu estava numa época da vida em que só me apetecia ir plantar árvores e olhar passarinho. Mas, afastei a tristeza, esqueci ofensas. Depois dos setenta, chegou o tempo de novos projetos e de refazer projetos adulterados – o tempo breve de formar uma equipe, que me libertaria de “fazer pontes”.
No livro de Eclesiastes, está escrito que existe um tempo para cada coisa…
Por: José Pacheco