A história que vou contar aconteceu de verdade. Quem me contou foi um camarada que conheci há alguns dias. Um gaúcho simpático e engraçado. Vou chamá-lo de Patrick para manter sua identidade em sigilo. Vou tentar ser o mais fiel possível às palavras dele, recorrendo ao uso de palavrões, para que fique claro o tom que ele usou.
Essa é uma história para pensarmos sobre a importância de formarmos melhor os professores que chegam às escolas.
Eu e Patrick conversávamos sobre um assunto que eu adoro: educação. Não, ele não é professor. Mais especificamente, o assunto girava em torno dos professores que não são educadores, que estão preocupados com notas e que gostam de usá-las para oprimir seus alunos. Paulo Freire já falava disso: o sonho do oprimido é ser opressor. Patrick começou assim:
– André, tu sabe o que aconteceu comigo? Eu nunca fui um aluno de estudar, mas nunca repeti de ano. Eu dava meus “pulo” para conseguir tirar as notas que precisava na escola. Eu estudava em um colégio religioso bem tradicional em Porto Alegre (vou evitar colocar o nome da instituição aqui) e logo no início do ano a professora de química me disse: “tu não vai passar comigo, guri. Tu vai rodar comigo.”
– Eu não sei qual é o prazer que os professores tem de ameaçar os alunos assim… – falei, interrompendo a narrativa.
– Pois é… Aquela vaca falou isso pra mim no início do ano. Chegou no final do ano, eu passei em tudo e fiquei em Química. Minha mãe foi na escola pra tentar resolver, mas não tinha jeito, então a escola me reprovou. Ela passou o ano tentando me colocar em situações humilhantes nas aulas. Eu fiquei puto com ela. Eu não acreditei naquilo que tinha acontecido. Beleza… Chegou no ano seguinte, primeira aula de química, quem entra na sala? Ela mesma! A filha da puta que tinha me reprovado! Ela olhou pra mim e disse: “tu de novo? Tu vais rodar comigo de novo. Tu não vais passar, guri!”
Enquanto ele narrava a história pra mim, reparei que ele não conseguia manter a perna parada, balançando-a o tempo todo e seu rosto ficava avermelhado. A simples lembrança daqueles momentos vividos na juventude alteravam fisicamente seu corpo.
– Porra, quando eu vi aquela mulher, cheguei em casa, falei com a minha mãe e pedi para ela me mudar de turma, porque a professora iria me reprovar de novo. Fiquei desesperado. Minha mãe conversou com a diretora, mas eles não me trocaram de turma. Tinha 3 professores de química na escola, eu poderia ir para qualquer turma que tivesse outro professor, mas eles não deixaram. Aquela desgraçada me perseguia de todas as formas, ria de mim, falava mal de mim para eu ouvir… Eu odiava a filha duma puta! Até que um dia eu cansei. Eu sabia que ela iria me reprovar. Eu peguei a lata de lixo, mijei dentro dela e coloquei sobre a porta da sala. A galera da turma adorando, né? Queriam ver o circo pegar fogo! Eu fiquei olhando para ver se a professora estava vindo. Assim que ela apareceu no corredor, eu me sentei. Quando ela abriu a porta, levou aquele banho de mijo! A turma inteira riu da cara dela. Ela ficou puta e gritou, perguntando quem tinha feito aquilo. Eu não tinha mais nada a perder, levantei o braço e disse: “fui eu, mas não chega perto, que tu tá fedendo a meu mijo”. Fui expulso da escola. Abandonei os estudos. Não terminei a escola. Até hoje eu odeio química. Odeio estudar.
Com certeza aquela professora, assim como muitos dos meus colegas, julgava que Patrick era um perdido na vida. Não seria “alguém”.
Patrick hoje tem 34 anos e trabalha em uma empresa de produção cultural, levando espetáculos teatrais e cinema para adultos e crianças de comunidades por todo o Brasil.
Ele me disse que só falta conhecer o Acre, Rondônia, Roraima e Amapá. Ele dirige o caminhão que serve de apoio para os espetáculos e ele mesmo monta o caminhão para as apresentações.
Patrick recebe um salário de dar inveja a muitos professores brasileiros, bem acima do que um professor de 40 horas recebe na maioria dos municípios. Só de vale alimentação, ele recebe 10x o que eu recebo.
Quando está em casa com sua família, ele gosta de ajudar sua sobrinha a aprender as matérias da escola (irônico, não?).
Patrick viu meus filhos e me disse que seu sonho era ser pai, mas não tem sido fácil achar uma mãe que aceite o trabalho que ele tem, sempre viajando pelo Brasil.
Graças ao Patrick e outras pessoas, algumas crianças podem ver teatro e cinema pela primeira vez na vida e COM AR-CONDICIONADO E POLTRONA DE VELUDO VERMELHA!
Hoje Patrick recebe um salário maior do que aquela professora que destruiu a vida escolar de um menino. O que será que essa professora diria se encontrasse seu ex-aluno hoje? Será que ele se tornou “alguém”?
Imagine ser um professor e ser responsável pelo abandono escolar de um aluno…
Muitas vezes ouvi professores falando atrocidades de seus alunos. Uma verdadeira declaração de sua própria falência como educador e ser humano. Todos os dias nós, professores brasileiros, apanhamos do sistema. Todo mês a gente lê uma notícia de que estão tentando retirar de nós o pouco que merecemos pelo nosso trabalho. Infelizmente alguns professores ficam tão furiosos que descontam em quem podem oprimir: os alunos e alunas. Isso é desumano.
Chegam a colocar toda a responsabilidade da aprendizagem na própria criança, sem abrir mão de seu orgulho próprio para perceber que seus métodos, suas didáticas não são capazes de dar conta de 100% de seus alunos e que precisam buscar outros caminhos. Costumo dizer que não existe zona de conforto na educação e quem busca isso está entendendo pouco o que significa aprender.
Dizia o poeta: gentileza gera gentileza. O inverso também pode ser verdade: desamor gera desamor.
Precisamos de pessoas de verdade nas escolas, educando nossas crianças, mostrando a elas o que é ser humano. Infelizmente ser professor é muito fácil, então qualquer um acha que tem aptidão para isso, basta calar a boca dos alunos, colocar matéria no quadro e corrigir prova.
Professores, precisamos transformar as escolas em um ambiente de segurança, respeito e cooperação. Precisamos parar de errar no básico.
Fico contente de ver que muita coisa está mudando e a cada dia tenho esbarrado em mais educadores vivos pelas escolas que visito. “Ainda vai levar um tempo pra fechar o que feriu por dentro”, mas os ventos estão mudando. Nós não estamos sozinhos! Somos muitos que acreditam em uma educação verdadeira, humana e do século XXI.
Por: André Luís Corrêa