Estórias da Velha Escola (XXXIV)

Fafe, dezembro de 2039,

Hoje, falar-vos-ei da Mirinha, maravilhosa criatura e minha aluna dos idos de setenta. Os azares da vida levaram a Mirinha a passar os primeiros tempos de escola num estranho lugar, onde não era hábito os alunos fazerem testes simultâneos e iguais para todos. Por esta e outras razões, a pequena não desenvolveu as mais elementares competências “transversais”, entre as quais avultava a arte de bem “colar” toda a prova.

Pelo fim do último ano de estadia na “primária”, ainda lhe deram (sob a forma de jogo) a possibilidade de penetrar os mistérios do mundo dos testes e aceder à compreensão dos estranhos rituais que os acompanham.  Mas a pequena não conseguia perceber por que razão o teste a mandava escrever o que o personagem da história tinha visto, se a resposta estava escarrapachada no corpo do texto e à vista de toda a gente. E, a certa altura desse jogo de sorte e azar, quis saber por que estava o professor ali estava especado, porque não ia fazer algo útil, em outro lugar. Quando o professor lhe respondeu que, na escola para onde ela iria no ano seguinte, era hábito haver um professor a vigiar os alunos enquanto estes faziam as provas, a Mirinha perguntou:

E o professor vai ficar aí parado, a perder tempo?

Um jovem oriundo de uma escola, onde era hábito fazer testes, a esclareceu:

O professor fica na sala para não deixar que os alunos possam colar.

O que é colar? – devolveu a Mirinha.

Sempre me senti individualmente responsável pelos atos do meu coletivo, do meu grupo profissional, e a pergunta da Mirinha incomodou-me. O professor que ficavava de vigia considerava que os seus alunos eram seres potencialmente desonestos – Se pudessem colar, colariam. Se o professor não ensinava aquilo que dizia, mas transmitia aquilo que era, o professor-polícia transmitia valores: desconfiança, mentira, falsidade, corrupção… O não verbal falava mais alto que o verbal! O professor, que ficava de vigia, deseducava.

Decorridos quatro anos, a Mirinha frequentava o oitavo ano, numa escola onde se fazia testes. Por uma questão de princípio (ou porque a aprendizagem de uma determinada atitude se tinha processado na “primária”), não incorria naquilo que começara a classificar de “deslealdade”. Até que, um dia, chegou a casa visivelmente incomodada e a mãe quis saber o porquê da arrelia.

Ao cabo de algumas insistências, a Mirinha lá desembuchou: Hoje, houve prova, A meio, a professora foi chamada ao telefone, acho eu. E quando voltou, percebeu que muita gente tinha colado. Vai daí, disse que nos ia tirar dez pontos a todas.

A todas? – perguntou a mãe, surpreendida.

Sim, a todas! – confirmou a Mirinha.

Não me digas que tu também… – insistiu a incrédula progenitora.

Não! É claro que não colei! Que eu saiba, fui a única que não colou! – retorquiu peremptória a jovem.

E, então? Não percebo! Não sabias dizer à professora? – devolveu-lhe a mãe.

Ó mãe, tu achas que a professora iria acreditar em mim?

Alguns anos mais tarde, o vosso avô teve de fazer um teste… na universidade.

Entrei na sala da prova. As primeiras filas estavam vazias. Os alunos estavam no fundo da sala. À entrada, um amontoado de malas de senhora, pastas, cadernos…

Sentei-me na primeira fila. A vigilante ordenou-me que colocasse a minha pasta junto das restantes, na entrada da sala. Recusei cumprir a ordem. Ameaçou-me de não permitir que eu fizesse o teste, se não lhe obedecesse. Desobedeci. Sem perder a dignidade, sem permitir que duvidassem da minha honestidade. Porque o vosso avô era educador.

Acolhei um beijo repleto de saudades do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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