Estórias da Velha Escola (XXXIII)

São José do Rio Preto, dezembro de 2039,

Queridos netos,

Em São José, de onde vos envio esta missiva, existe uma escola – a Maria Peregrina – onde a pedagogia, para além de ser arte e uma ciência, é um quotidiano exercício de ternura. Sem ela, o ato de educar não passa de um ritual sem sentido. Por essa razão e influenciado pela candura deste lugar de crianças felizes, me lembrei do burro do Manuel Pândego. Porque ele não era apenas amoroso e justo. Era sábio. E um sentimental, como, mais adiante, iremos ver.

O burro do Manel Pândego admirava a doçura que a professora Joana punha nos gestos e compreendia que das zangas não restava azedume que o tempo não curasse. Pelo facto de (na qualidade de burro) lhe ser vedado o acesso à escola, quedava-se pela observação de aprendizagens que ali aconteciam, sem cuidar de avaliar a produção. Ainda que fosse considerado burro, entendia – bem melhor do que os que tal não se consideram! – que uma brincadeira de crianças pode ser geradora do maior desenvolvimento cognitivo, afetivo, emocional… Tanto quanto a esperteza de um burro pode discernir, reconhecia num improvisado jogo de futebol um espaço de socialização por excelência.

O recreio estava prestes a acabar e o jogo estava empatado. As equipas concordaram que a canelada que o Tónio Melro dera no Pita Borrada era digna de ser sancionada com pénalti. E o remate do Neca Gaio era golo certo…

A claque rejubilava. A professora Joana já chamava para dentro. O ambiente estava de cortar a respiração. O Neca Gaio tomou balanço e encheu o pé num tiro certeiro. Mas a trajetória da bola foi gloriosamente travada pelo Eurico – para que se respeite a verdade dos fatos, acrescente-se que a defesa não foi nada convencional. A bola, desviada pela Mafalda, foi-lhe ao nariz…

A Mafalda era a única rapariga da turma com estatuto de futebolista. Era muito requisitada por ambas as equipas para ocupar a posição de zagueira. Jogava sempre à defesa (no futebol como no resto…). Interpretando à letra a tática que diz ser o ataque a melhor defesa, se deixava passar a bola, não deixava passar o adversário. Foram muitos os joelhos esfolados e respetivas expulsões acompanhadas de queixinhas à professora.

Temendo as represálias da mestra, a Mafalda manifestava o maior dos arrependimentos. Para quê? A professora Joana a acolhia na ternura dos seus braços e trocava a reprimenda por um abraço. Nem uma palavra de reprovação, apenas um olhar fofo de esperança. A Mafalda – considerada pelos vizinhos como “durona e arrapazada” –  acabaria por perceber que o amor e a paciência operam milagres. Foi a primeira a socorrer o Eurico, sem se importar que o seu lencinho ficasse manchado de sangue.

Enquanto a turma regressava ao afã habitual, o Eurico era acolhido pelas mãos carinhosas da professora Joana, que o curava das lesões do corpo e do espírito. Testemunha discreta de pequenos dramas, logo que ficou sozinho, o burro deixou escapar algumas lágrimas, que deslizaram pelo pêlo encharcado.

O Manel Pândego justificava o frequente lacrimejar do burro com o fato de o pasto ser desabrigado e facilmente o velho animal se tomar de resfriado. Enganava-se, mais uma vez. A lágrima que aflorava ao canto do olho era pura emoção, reflexo da estima que nutria pela pequenada e, em particular, pela professora Joana.

Que aquilo não era apenas uma escola sabia o burro – um verdadeiro doutor! – que, por nunca poder chegar a lugares de decisão, sabia da realidade educativa próxima muito mais que os que sobre ela decidem à distância.

Recebei um beijo do vosso avô José.

Por: José Pacheco

 

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