Candangolândia, 6 de setembro de 2040
Ainda há quem me pergunte por que escolhi Brasília para passar os últimos dias desta vida de inveterado viajeiro. Sinto que foi Brasília que me escolheu. O meu corpo percorreu as sete partidas do mundo, mas acabou em terras candangas, onde assisti ao nascimento de uma nova educação.
Estou de regresso a lugares percorridos nas minhas peregrinações, de há vinte anos, pelas escolas do Distrito Federal. E evoco a saga de um Agostinho brasiliense, que partiu de Brasília para Portugal, quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada para Brasília. Apenas pode criar um Instituto de Letras na universidade que Darcy sonhara.
No meu livrinho “Aprender em Comunidade”, evocando um “núcleo de projeto”, constituído por Darcy, Anísio e Agostinho, escrevi: “Assumindo as contradições da época em que viveste, defendias a aplicação do conhecimento científico na educação, mas consideravas ser a educação uma arte, algo mais complexo do que uma ciência”. Há 22 anos, a convite da Cátedra Agostinho da Silva, participei na celebração dos 55 anos do Instituto de Letras. Na sua alocução, a Rozana citou esse excerto do livrinho, para realçar o espírito de colaboração e diversidade:
“Somos diversos. Meu muito obrigada a todos e todas, os que construíram e construímos, diariamente o Instituto de Letras”.
Evocando Agostinho, a Lúcia assim falou:
“É com grande esperança que vamos continuar. Quem sabe essa é a transformação da educação?”
Efetivamente, era o reinício da transformação sonhada por Agostinho, concretizada por um punhado de educadores brasilienses, herdeiros de mestres como a Lucinéia, que laborava na UnB desde 1977, no tempo em que instituto ainda tinha a designação de Instituto de Expressão e Comunicação.
No ato de entrega de uma placa comemorativa à servidora Lucinéia, a diretora do instituto “quebrou o protocolo”, abraçando-a e dizendo
“Todos construímos o Instituto de Letras, que temos hoje. Todos”.
Isso mesmo! Como diria o Brecht “A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?” Do simples candango ao Mestre Agostinho, o Instituto fora obra de um coletivo, projetos humanos são atos coletivos.
Para fazer uma universidade, Agostinho veio de Portugal para Brasília. Outros vieram de mais perto. Como o candango Antônio, migrante do município Senhora dos Remédios de Minas Gerais. Agostinho faleceu em finais do século passado. António partiu em 2020. O pioneiro assim era lembrado pela companheira, que com ele viveu por 64 anos:
“Viemos em 1958 para o lugar onde Brasília nasceu. O António sempre foi muito trabalhador. A nossa vida foi de muita luta, mas muito feliz. Naquela época, tudo em Brasília era difícil. Eu comecei a vender cafezinho e cigarro para o pessoal que trabalhava aqui”.
Não sei se o António participou na construção da UnB, mas sei que Agostinho partilhou com os candangos um dos barracões onde dormiam os trabalhadores. Certo dia, o Darcy entrou no barracão e entregou um envelope ao Agostinho:
“Aqui está o teu primeiro salário, meu amigo!”.
Agostinho voltou-se para os candangos, que por ali estavam, e perguntou:
“Alguém precisa deste dinheiro?”
Vários trabalhadores passavam por dificuldades e alguns até disseram passar fome. Agostinho abriu o envelope, retirou as notas e as distribuiu pelos candangos.
Esse Mestre assumia uma ética da renúncia. Nunca teve cpf, ou conta bancária. Vivia como o seu sistema de valores lhe impunha que vivesse. Foi fiel aos seus princípios: ”O homem não nasceu para trabalhar, mas para criar” e “A vida deve ser gratuita”.
Por: José Pacheco