Estórias da Velha Escola (IX)

Sintra, abril de 2040

Hoje, falar-vos-ei dos conturbados do tempo em que o vosso avô se iniciou na arte e ciência de aprender e de ajudar a aprender.

Já lá vão mais de setenta anos, andei por terras do meu amigo António. Quando ele me permitiu partilhar a sua “sala de aula”, pude testemunhar a relação de respeito e autoridade, que ele mantinha com os seus alunos. O respeito, que permitia garantir o direito à aprendizagem. A autoridade, que dispensava atitudes autoritárias. O António fez-me evocar outros professores…

Conheci um, que me afiançou que, no primeiro dia de aulas de cada ano lectivo, “dava toda a corda à turma”, esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem se revelasse. Então, “parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano”.

Tal e qual me disse esse professor de “pedagogia musculada”. Mas, foi-me concedido o privilégio de reconhecer a distância que vai da violência “disciplinadora” desse professor de antanho à ternura dos braços de uma Ana, que viveu por dentro o quotidiano de um bairro degradado. Entre outros dramas, conheceu o de uma criança por todos considerada “violenta”, hóspede quase permanente de um “quarto escuro”, onde cumpria longas horas “de castigo”. Porém, nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras, abreviava o seu regresso ao “quarto escuro”.

Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo vicioso de violência, “crime e castigo”. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distracção da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braços. A pequena ainda esperneou, sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à punitiva escuridão. Tremeu, quando a Ana a beijou na face. E já quase não opôs resistência. Sentiu o abraço como abraço. Mas não demorou a procurar mais sarilhos. Voltou – qual pássaro sem ninho – ao aconchego dos braços e ao afago dos lábios da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o íman do afecto prendeu-a definitivamente. A pedagogia do abraço vencera a da punição.
A vida dos professores está recheada de acontecimentos dignos de narrar e, como não há duas sem três, aqui deixo registo de outra peculiar experiência, protagonizado por um “professor primário”.

O dia começou num vaivém entre vinte e tal crianças a chorar e meia dúzia de ansiosas e renitentes mães, coladas ao umbral da porta, ora espreitando a descendência pelos interstícios, ora penetrando, para assoar o nariz do herdeiro, ou dar-lhe um beijo de despedida. Era o primeiro dia de aulas.

Respeitosamente, o professor Rui encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido da saída. Ao cabo de uma longuíssima meia hora, logrou encostar a porta: “com licença, desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois, é natural, coitaditos, não é? As gotas, pois, não me esquecerei, pois, dá-me licença, se fazem favor, sim, minha senhora, não me esquecerei, com certeza…” Com mão firme e beijinhos nas crianças, conseguiu fazer descolar da porta os dedos da última mão da última mãe, deitou um olhar àquela que seria a sua “primeira classe” e respirou tão profundamente quanto a ansiedade lho permitia.

Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaçavam retomar o choro. Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego. Era assim, o dia-a-dia de um “professor primário”, feito de paciência e de beijos.

Recebei um beijo à moda da Ana e do Rui, mas do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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