Cotia, janeiro de 2040
O episódio aqui descrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns vinte anos, eram modos de as pessoas inventarem fofocas e conversarem sobre insignificâncias. Talvez já não vos recordeis desses apetrechos da era em que imperavam as chamadas tecnologias digitais de informação e comunicação. Estávamos no tempo das ditas “novas tecnologias”, mas, na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares. Não raras vezes, utilizadas para manipular, ou criar dependentes de ágeis polegares.
Recordo-me de te ver, querido Marcos, às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas que o episódio incluso nesta carta se desenrolou. O dono da empresa quis conversar comigo e foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos:
Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino?
Não. Nós criamos uma plataforma, mas de aprendizagem – respondi.
De aprendizagem? E essa plataforma tem o currículo todo, os conteúdos?
Não. Aqui, os jovens não consomem currículo. Eles constroem currículo, conhecimento, a partir de projetos.
Que tipo de projetos os professores preparam para os alunos?
Não preparam. Constroem com os seus educandos.
E têm lousa digital nas salas de aula?
Não há salas de aula. Nem lousas digitais.
Como? Então… – E a conversa ficou densa, carente de explicitação. Para a suavizar, perguntei:
Quais são as vantagens de uma plataforma de ensino?
A vantagem é que os alunos podem escolher o que querem estudar.
Dá-me um exemplo, por favor.
Por exemplo, em determinado dia, um aluno escolhe estudar… raiz quadrada.
E por que razão ele escolhe estudar raiz quadrada nesse dia?
Após alguns segundos, com ar de quem reflete, respondeu:
Nunca tinha pensado nisso.
Pois não… Naquele tempo, os alunos consumiam um currículo “pronto-a-vestir”, servido por uma “base curricular”, em plataformas digitais. Aulas invertidas e híbridas quase dispensaram o professor. Mais tarde, os educadores compreenderam que tinham feito um grande disparate.
Os pais queixavam-se de ver os filhos amarrados a computadores, a videojogos, esquecendo que, quando bebés, ao invés de chupeta, lhes tinham posto nas mãos um computador, para que não gritassem, para que se calassem. As “novas tecnologias” transformaram-se em panaceias do modelo escolar. Apenas serviam para o consumo acéfalo de conteúdo, sem resquícios de cooperação, na dependência de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.
A Internet era generosa na oferta de informação. Tudo o que um professor pudesse “ensinar” estava disponível, de modo mais atraente, num computador. Os professores mantinham-se ancorados em práticas obsoletas, servidas em lousas digitais, ou replicando aulas congeladas no YouTube. O modo como utilizavam a Internet fomentava imbecilidade e solidão. As escolas tinham-se enfeitado de informação sem cuidar da comunicação, sem lograr desenvolver autonomia e senso crítico.
Nesses recuados tempos, a democracia viveu tempo sombrios. A sociedade padecia de medo, egoísmo, fundamentalismos. Foi, então, que educadores atentos se aperceberam da sua quota parte de responsabilidade. E, no início dos anos vinte, a crise cedeu lugar a novas práticas sociais, o espectro de novas inquisições se desvaneceu. Chegara o tempo de usar o digital ao serviço da humanização da escola.
Com amor,
O vosso avô José
Por: José Pacheco