Estórias da Velha Escola (XXXVI)

Toritama, dezembro de 2039

Envio-vos esta carta de Toritama, cidade que conheci, há uns trinta anos, quando fui encontrar-me (e aprender) com educadores dos cafundós de Pernambuco. Surpreendi-me com a extrema pobreza daquele povo. Toritama padecia de um dos índices pluviométricos mais baixos Agreste. Com um clima semiárido, com um solo pouco propício à agricultura e um rio apenas temporário, o povo buscou sobrevivência na fabricação de jeans. Sendo um produto de qualidade e preço baixo, o jeans de Toritama atraía intermediários, que os adquiriam por quase nada e os revendiam por bom preço.

Mais tarde, pude compreender as raízes da desigualdade social, a razão do sofrimento daquele povo. Num jornal da região, uma foto ilustrava a notícia de uma visita ilustre. Através de uma cerca de arame farpado, com olhos visivelmente marejados de lágrimas, um presidente nascido no Agreste fitava crianças pobres do Agreste.

Jamais esqueci a impressão que a foto me causou. Um sensível Cristovam (*) assim a comentou:

Taciana, então com 6 anos e que na foto está bem em frente ao presidente, deixou a escola aos 14, engravidou aos 15 e, aos 16, tinha um filho. Um colega dela, antes dos 15 anos, já estava fora da escola, tornou-se vigilante informal nas pobres ruas de Canaã, bairro de Toritama, até ser assassinado aos 19 anos de idade. Sua morte foi comentada como um mistério: alguns disseram que foi herói, resistindo a bandidos, outros que havia sido ajuste de contas do tráfico. Seu irmão, Diego, que não aparece na foto por ser muito pequeno na época, abandonou a escola cedo e já havia sido preso. Na cadeia, foi jurado de morte por outros presos; esfaqueado, fugiu do hospital e desapareceu. O que ri para o presidente deixou a escola antes de terminar a quarta série. O menino conhecido como Nego, então com 8 anos, não estudou e tinha dois filhos, apenas dez anos depois. Rubinho, com 7 anos à época, para quem o presidente Lula parecia olhar, deixou a escola antes da quinta série e aos 17 teve um filho. Da escola, só se lembrava da merenda, que lhe permitia superar a falta de comida em casa. Mal aprendeu a ler, nunca havia lido um livro. Entre períodos de desemprego, Rubinho teve ocupações temporárias em algumas das muitas “fábricas” de montagem de calças jeans, onde homens e mulheres passam o dia unindo peças que lhes chegam cortadas, em um trabalho manual, mecânico, maçante, que os condena a serem parte das máquinas em troca de salários irrelevantes. Cristovam acrescentava: Toritama é um Mediterrâneo onde aquelas crianças naufragaram na viagem para o futuro, diante dos olhos dos nossos governos e de todos nós.

Na “Pedagogia da Esperança” e nas “Cartas a Cristina” encontrei um princípio de explicação do “naufrágio”. Nessas obras, o Mestre desocultava os contrastes político-sociais do Brasil e nelas pude desvendar a extraordinária dimensão da fraterna sabedoria freiriana. Muitos energúmenos o detestavam, porque Freire denunciou a opressão, a exclusão, a reprodução de uma educação “bancária”. Não lhe perdoavam ter evidenciado a natureza política (e amorosa) do ato de educar. E abusavam da liberdade de expressão para enlamear a sua memória. Energúmeno era e é, também, sinônimo de possesso, e de fanático. E foi em Pernambuco, terra natal do Mestre, que o fanatismo de alguns energúmenos se manifestou, quando ousaram retirar o seu nome, que havia sido dado a uma escola.

Hei de retomar o assunto. Por agora, acolhei o freiriano abraço do vosso avô José.

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(*) “Por que falhamos”, de Cristovam B. de Holanda.

 

Por: José Pacheco

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