Estórias da Velha Escolas (III)

São Lourenço de Minas, setembro de 2039

Queridos netos,

Rubem Alves propunha que a educação fosse romântica. E eu propus que fosse, também… conspiradora. Assim, nasceram, no distante ano de 2004, os “Românticos Conspiradores”. Em 2013, os RC publicaram o “Terceiro Manifesto da Educação”. e deram origem à CONANE – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação. é bom lembrar…

Quatro anos antes, o Rubem visitara a Ponte e isto escrevera no seu livro “A Escola Com Que Sempre Sonhei”: Quero uma escola que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma escola em que o ponto de referência seja o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios.

Muitos adultos parecem ter perdido a capacidade de ver o mundo com olhos de inícios e, desse modo, justificam o fecho ao imprevisível. Acredito que não vos deixareis possuir por essa maleita e que conserveis indelével nos vossos olhos a alegria da descoberta. Como a alegria que emana da Angélica, que me trouxe até São Lourenço, para participar de um encontro dos “RC”. Ou como a alegria que a escola do Nelson – a Escola da Ponte – lhe proporcionava.

Certo dia, desapareceu a merenda de duas mochilas. E uma comissão de ajuda se constituiu, para apurar razões e ajudar a resolver o problema. Discretamente, me informaram de que teria sido o Nelson o autor do delito.

Aproveitei uma pausa nos trabalhos do dia e convidei o Nelson para uma conversinha, num cantinho recatado. Abracei-o e nem precisei de lhe dizer o que sabia. Contendo o choro, o Nelson confessou o furto:

Professor Zé, eu tenho fome. A minha mãe não tem que nos dar de comer.

Com um restrito e discreto grupo de professores e vizinhos, cuidamos de que nunca mais a fome açoitasse o estômago da mãe e dos irmãos do Nelson. Mas outros açoites o Nelson recebia…

Chegava pontualmente atrasado à escola. Todos os dias, o professor se sentia tentado e no direito de o interpelar, de lhe perguntar das razões do invariável atraso. Até que, não resistindo à tentação, mas com muito jeitinho, arriscou a pergunta:

Por que chegaste só agora?

O Nelson explicou e o professor ficou a saber que, na noite da véspera e mais uma vez, o pai havia “arreado uma coça na mãe”, que ela até tinha ficado “com pisaduras nas pernas e um olho deitado abaixo”. No meio da confusão, o Nelson, como o mais velho de três irmãos de diferentes pais, fizera uma retirada estratégica, refugiara-se com o resto da família num tugúrio de zinco e tijolo sem reboco, até passar a refrega.

Explicou e o professor ficou a saber como o Nelson conseguiu, já noite adentro e com o pai ausente no “café de senhor Tião”, ajudar a mãe “a ligar a perna e a dar o biberão ao Tiaguinho”. E concluiu:

Acordei com muito sono, professor, porque a Carlinha, a minha irmã do meio, não nos deixou dormir. Chorou a noite toda. E, como nós não temos dinheiro para pagar a eletricidade, não temos luz. Tivemos de esperar pela luz do sol…

E por que foi que a Carlinha chorou tanto? – perguntei.

Os ratos roeram-lhe uma orelhinha.

O Nelson apercebeu-se de que eu estava com dificuldades de achar palavras para preencher o silêncio, que então se fez. E acrescentou:

Mas não importa, Professor Zé. A minha vida é muito triste. Mas, quando eu venho para a escola, sinto cá dentro uma coisa… Olhe, parece mesmo alegria!

Que a vida ilumine os vossos caminhares e, também, os preencha da alegria de viver.

Com amor,

O vosso avô José. 

 

Por: José Pacheco

 

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