Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXVI)

Cidreira, 21 de março de 2041

Num seminário sobre “flexibilização curricular”, uma diretora de agrupamento afirmou, orgulhosa, ter introduzido uma inovação (foi isso mesmo o que ela disse) na gestão do tempo. Substituiu a atribuição das notas trimestral (os seus professores ainda “davam nota”) pela nota… semestral.

Eu cheguei a acreditar que se tratasse de uma blague, do uso da ironia para captar a atenção e, depois, dizer qual fora a “inovação”. Mas, ela mais não disse. Foi ovacionada. E, para não faltar ao respeito à senhora, me retirei do local.

Nos idos de vinte, o debate sobre educação era algo surreal. Soube que, após a minha saída do auditório, essa diretora enalteceu o regime de ciclos e disse ser esse o regime em vigor nas suas escolas. Fora do auditório, um vendedor de livros escolares, fazia publicidade aos manuais usados nas escolas que a senhora diretora superiormente dirigia. As capas desses manuais ostentavam inscrições como “Matemática 1º ano”, “Língua Portuguesa 2º ano”, “História 7º ano”… Ano! Cadê o ciclo?

Outro entretenimento em voga por essa altura era o de estabelecer “a melhor idade para aprender a ler”. Deparávamos sempre com as mesmas inúteis discussões, as mesmas abstrações. Eram organizados congressos. realizadas reuniões nos ministérios, para se encontrar resposta para uma pergunta que aportava um pressuposto – o de que todos deveriam fazer o mesmo, aprender o mesmo, no mesmo momento.

Conheci crianças de cinco anos aptas para a alfabetização e jovens de dez anos sem condições de aprender. Quando se pronunciava a palavra “aluno” de qual aluno (em concreto) estariam a falar? De nenhum…A melhor idade era a idade de cada qual.

O processo de letramento deveria ser considerado como um processo de inclusão. Aprender a ler pressupunha desejo e esforço. A linguagem é aprendida socialmente, nas interações verbais, como nos avisavam Bakhtin e Freire. Não poderia ser ensinada segundo a presunção de Comenius de que seria possível ensinar todos como se fossem um só. Se o fizesse, a escola não promovia o uso da leitura e da escrita como meio de comunicar e de assumir cidadania.

Quando uma professora quis ensinar a letra fê, recorreu a uma daquelas frases de antologia, que só traduziam desprezo pela inteligência e criatividade da infância. Leu para toda a turma, ao mesmo tempo, do mesmo modo:

“A mãe afia a faca.”

A Fia sou eu! – exclamou uma aluna.

“Não é nada disso, Jéssica! Eu disse afia! Afia é como… amola. Percebeste?”

“A mola?” – perguntou a aluna, com cara de nada entender.

“Sim. Amola! Já vi que compreendeste!” – concluiu a mestra.

Por este e por outros fonéticos equívoco é que alguém já disse que a linguagem é fonte de mal-entendidos.

Quando visitava uma escola, perguntei a um pequenito:

“Estás a ler essa revista?”

“Não. Eu estou só vendo e cortando. Não estou lendo!”

Sábio moço! Tinha consciência de que cortar de uma revista, palavras “que tivessem o ca e o co”, como mandara fazer a professora, não era o mesmo que ler. Nunca lera Boff, mas sabia que cada leitor e cada escritor era coautor, que cada leitor lia e relia com os olhos de que dispunha, porque compreendia e interpretava a partir do mundo que habitava.

Os adultos sabiam por que queriam aprender a ler:

“Eu vim aprender a ler, para poder ler os bilhetes que estão nos bolsos do casaco do meu marido”.

Também os menores nos davam lições de pedagogia. Como a Luciana:

“Ler é saber em silêncio”.

E os professores não eram desistentes:

“Muitos dos nossos alunos repudiam a escola. Ela os sufoca, mas nós acreditamos numa outra escola. E iremos lutar para que ela exista”.

Por: José Pacheco

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