Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXCVIII)

Montalegre, 12 de abril de 2041

Queridos netos,

Irei visitar-vos, em breve. Por agora, suportando as habituais dorezinhas ósseas (coisa de velho), passeio por terras de Trás-os-Montes, em visita ao meu amigo Tozé. Ele foi um extraordinário professor e dirigiu um centro de formação, onde, na década de oitenta, a didática passou por questionamentos. A propósito: dissestes serem “didáticas” as minhas últimas cartinhas. Não errastes. Efetivamente, creio ter retomado a prática semi-instrucionista das minhas “aulas dialogadas” dos idos de setenta do século passado. E vos direi por que razão o faço. 

A memória de muitos educadores parece ser curta. Em 2041, observava fenômenos de regressão, reminiscências daqueles que eram comuns nos idos de vinte. E vigiava o cíclico retorno de práticas fósseis. 

Na década de setenta, elaborei uma primeira crítica fundamentada do instrucionismo, para fundamentar o projeto da Ponte. Décadas atrás, a praga invadira a Internet. Por isso, quando o instrucionismo foi implodido e as salas de aula foram desmontadas, propus que se conservasse uma dessas salas, de modo a que as gerações vindouras vissem como os alunos dos séculos XIX, do século XX, e até mesmo do século XXI, foram presencial e remotamente maltratados.

Por essa altura, a Tina enviou-me um e-mail com três perguntas: 

“Tem que ter aula? Tem que dividir por idade? Tem que ter prova?”

A Tina integrava um excelso grupo jurídico, que apoiou o processo de transição operado pelas turmas-piloto. Dele faziam parte – e aqui merecem referência, dada a sua entrega à causa das crianças – o Antônio, o Isaac, a Paula, o Ricardo, o Guga e outros advogados, que conferiram sustentabilidade jurídica ao projeto.

Recordo-me das respostas que dei. E aqui as reproduzirei. Eis a primeira.

“Tem que haver aula?”

A resposta foi um rotundo “Não”. Mas acrescentei a fundamentação. Sem a pretensão de concorrer com os meus amigos juristas, realizei uma rápida análise de conteúdo das leis de bases do Brasil e de Portugal.

A lei portuguesa era bem mais generosa do que a brasileira, pois consagrara aquilo que poderia ser chamada de “cláusula pétrea”. Refiro-me ao número 3 do artigo 48º da Lei de Bases do Sistema Educativo:

“Na administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino devem prevalecer critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

Isso mesmo. Lestes bem: critérios de natureza pedagógica e científica deveriam prevalecer sobre critérios de natureza administrativa. Mas, não era isso o que acontecia. Apesar de ninguém poder alegar o desconhecimento da lei, parecia que os burocratas das secretarias não conheciam a lei, pois tomavam decisões com base em critérios de natureza administrativa. Talvez padecessem de analfabetismo funcional – tendo lido a lei, não a souberam interpretar. 

O teor da lei era coerente com o artigo citado. Na lei portuguesa, a palavra “aula” surgia duas vezes, enquanto a palavra “autonomia” era usada cinco vezes. O termo “pedagogia”, em diferentes versões, surgia vinte e três vezes. E a palavra “ciência”, em diversos contextos, trinta e uma!

Por seu turno, na lei brasileira, a “aula” era referida 4 vezes e a palavra “autonomia”. o dobro: oito vezes! A “ciência” era citada onze vezes. E vinte vezes era utilizado o termo ”pedagogia”.

Estes quantitativos ilustravam, sobremaneira, a necessidade de, já nos idos de vinte, erradicar a “aula” da elaboração dos regulamentos. Mas, havia outras razões, muitos motivos para acabar com o aulismo. Prometo expô-las em próximas cartas.

 

Por: José Pacheco

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