Pirapora, 24 de julho de 2040
Por meados de julho, um pitoresco episódio me trouxe à memória situações do mesmo tipo, vividas no Portugal de meados do século passado. Um desembargador, que passeava sem máscara protetora, rasgou a multa passada por um guarda municipal. Não fora bastante o despropósito, ainda ofendeu o cioso defensor da lei. Creio que lhe terá chamado “analfabeto”.
Ocupando um sórdido segundo lugar do ranking dos países onde a desigualdade social prevalecia, o Brasil assistia a infames situações de afirmação de ostensivos status sociais. O desembargador agiu como se pertencesse a uma casta herdeira de privilégios materiais e simbólicos, quando deveria agir como se esperaria que agisse um servidor público.
Um médico e biólogo chamado Jacques, descobriu que, para além de genes biológicos (físicos), genes culturais se transmitiam de geração em geração. Atitudes racistas ou classistas passavam de pais para filhos, a cultura era como que o último estágio da biologia. O homem, enquanto animal social, era uma inteligência colaborando com outras inteligências, nos seus quatro bilhões de cérebros comunicantes e a cultura era o conjunto de comportamentos aprendidos. Esta e outras descobertas científicas convidavam a conceber uma nova ordem mundial, acima de limites artificiais, que confinavam a humanidade na animalidade. Urgia superar oposições derivadas do egoísmo de classe, nacional ou individual.
Mas, era pesada a herança cultural feita de séculos de escravagismo e coronelismo – a praga das castas sociais, políticas, religiosas, se reproduzia. Genética cultural, certamente, também fruto de um obsoleto modelo de educação familiar, social e escolar. Em finais do século passado, presenciei uma cena, que ilustra este meu arengar…
Duas viaturas colidiram numa rotatória. Por lei, a prioridade pertencia ao carro que contornava a rotatória, porém, a motorista causadora do acidente afirmava que não era sua a responsabilidade pelo sinistro.
Serenamente, o sinistrado argumentava com o código de estrada, pedindo à causadora do acidente os dados para entregar ao seguro automóvel. A senhora recusou dá-los, zombando do fato de o motorista ser trabalhador da construção civil. E, quando, pela enésima vez, respeitosa e pacientemente, ele repetiu o pedido, a senhora gritou o estribilho habitual:
Você, por acaso, sabe com quem está a falar? Eu sou diretora escolar! Eu sou doutora! Ouviu? Eu sou doutora e os doutores têm prioridade em tudo!
Acreditai, queridos netos, que foi mesmo isso que a “doutora” disse. Se o Brasil de novecentos tinha sido um “país de barões”, o Portugal de meados do século XX ainda era um “país de doutores”.
Sempre me avisavam, bem me diziam para não abordar “assuntos-tabu”. Mas, o desassossego derrotava a prudência. No quarto mês de isolamento social, enquanto 9 milhões de brasileiros passavam fome e sofriam outras privações, por terem o seu salário cortado, congressistas recebiam antecipação de metade do 13º…
Naquele tempo, subsistiam repugnantes castas., também no sistema de ensinagem. Havia ensino “superior” e ensino “inferior”. Havia ensino “público” e ensino “particular”. Este era “superiormente” considerado. Enquanto o particular “regressava às aulas”, as escolas públicas, as do ensino “inferior” não tinham previsão de retorno ao presencial.
A administração escolar nada tinha aprendido com a pandemia e forçava o “regresso às aulas”, um regresso à mesmice produtora de castas e reprodutora de desigualdade.
Por: José Pacheco