Alcobaça, 27 de setembro de 2041
A recordação de um encontro de finais da década de sessenta, acendeu em mim uma energia, que já não contava que me acometesse nos meus setenta anos. No distante outubro de 1968, animado por notícias provindas de Paris, fui com um amigo professor até um estádio, onde decorreria um dos encontros de início de ano letivo organizados pelo Estado Novo do Salazar.
Não consegui ficar até ao fim desse “show” da ditadura. Caí em desgraça, ao fim de escassa meia hora. Fizera perguntas inconvenientes. O sentimento de rejeição e os empurrões que recebi à saída foram mais uma contribuição para a decisão de trocar a engenharia pela educação.
Iniciava os encontros de há vinte anos perguntando: O que quereis saber? Mas, perante professores, que agiam de modo idêntico aos do festival de horrores de há sete décadas, optei por lhes dirigir algumas incômodas (e nunca respondidas) perguntas.
Nesta cartinha vos deixo a primeira das perguntas. Nas próximas, vos darei conta de outras. E lhes juntarei arremedos de argumentação, talvez, científica.
Ao longo de meio século, participei de várias iniciativas ministeriais de remediar o sistema educacional português. Foram concebidas entre o burocrático e o ingênuo e nunca lograram garantir a todos os alunos um direito fundamental: o direito à educação.
Entre 1970 e 1973, envolvi-me nas abortadas iniciativas da “Reforma Veiga Simão”. Em plena “primavera marcelista”, num discurso proferido na rádio, em 17 de janeiro de 1970, se declarava estar o Governo decidido a levar a cabo “a grande, urgente e decisiva batalha da educação”. Em 6 de Janeiro de 1971, o ministro da educação apresentou as linhas gerais da sua reforma do ensino, propondo uma ampla e aberta discussão.
Veiga Simão foi o último ministro da educação do Estado Novo. A sua reforma viria a influenciar reformas educativas, após a instauração do regime democrático. Afirmava: “saber ler, escrever e contar já não é quanto baste para os portugueses e um povo mais culto é sempre um povo mais livre”.
O ministro propunha a prestação de assistência médica aos alunos, a criação de cantinas escolares, a garantia de transportes escolares, o fornecimento gratuito de manuais e material escolar, o apoio às famílias mais necessitadas e a escolaridade obrigatória de oito anos, com novos programas. Recomendava a implementação de aulas de tipo coloquial, a organização de projetos multidisciplinares, tendo em conta as características de cada escola e as necessidades dos alunos.
É surpreendente a semelhança com o discurso das iniciativas ministeriais dos… idos de vinte. “Mais do que preparar os alunos para a vida”, a escola fomentaria “um humanismo universalista”.
No Parlamento, não faltaram as moções de apoio:
“No mundo português existem milhões de homens a educar. Educar todos os portugueses, promovendo uma efetiva igualdade de oportunidade, independentemente das condições sociais e económicas de cada um, é o objetivo desta batalha da educação”.
A tentativa de reforma do início dos anos setenta foi um dos marcos mais significativos de uma política reformista de “renovação na continuidade”, na e”volução sem revolução”. Mas, os beleguins da ditadura reagiram: “Foram banidos os sábios, os santos, os heróis, em prol do rebanho humano (…) o batuque africano no mesmo nível da sinfonia de Beethoven.” As aulas coloquiais foram consideradas “ensino ao sabor do capricho dos alunos, a transformação do professor em mero registador de conclusões.”
Por que se repetia, nos idos de vinte, esse retrógrado blá, blá, blá?
Por: José Pacheco