Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCLXIII)

Salir de Matos, 28 de setembro de 2041

Queridos netos, 

Mesmo não pretendendo fazer descrições pormenorizadas de eventos de há sete décadas, não resisti a trazer-vos notícia de ocorrências desse tempo distante. 

Como vos disse, o meu esperançoso envolvimento na abortada Reforma Veiga Simão resultou em desilusão. E precipitou a minha decisão de abandonar uma carreira de engenheiro e de me fazer professor. Entretanto, aconteceu uma revolução, a “dos cravos”. No dia 24 de abril de 74, o povo português adormeceu num regime fascista; no dia 25, acordou democrata. 

Esse “salto súbito” deveria ser acompanhado pela transformação da escola salazarista numa escola pública, berço de democracia e igualdade. A educação para a cidadania salazarista deveria ser substituída por uma educação no exercício de uma cidadania plena. Meio século decorreria, até à concretização desse desiderato. No dealbar da democracia, saindo do serviço militar, regressei – por vingança, como costumava dizer – ao chão das escolas. 

Quando criança, vivia num bairro pobre, era (e continuei a ser) estrábico e, por isso, sofria bullying e processos de exclusão. Mas, fiquei na educação por amor. Fui professor primário e universitário. E, entre anos de 1974 e de 1976, com o advento da democracia, vivi o privilégio de ajudar a cumprir a nova Constituição da República numa escola pública. 

Nos idos de 70, eu quase desisti de ser professor. Envaidecia-me o fato de os inspetores de ensino recomendarem a professores a assistência às minhas aulas. Eu era um auleiro magistral. Planejava a aula ao pormenor, confeccionava excelentes materiais, provocava “motivação”. Mas, apossou-se de mim o pressentimento de que, “dando aula”, estava a excluir gente, pois alguns alunos não aprendiam.

Compreendi que não deveria continuar “dando aula”. Mas, não sabia fazer mais nada. O modo como eu tinha aprendido era o modo como eu ensinava, como muito bem esclarecia o princípio do isomorfismo na formação. Sobreveio um dilema. Se eu só sabia dar aula, restavam-me dois caminhos: mudar o modo de ser professor, ou… deixar de ser professor. Optei por tomar a decisão ética, que me manteve educador: mudei!

A Ponte surgiu, talvez não por acaso, para me dar uma última oportunidade. Era uma escola como qualquer outra, uma escola degradada, que albergava “turmas do lixo”, maioritariamente constituídas por jovens de 14 e 15 anos, que não sabiam ler nem escrever, e que batiam nos professores. 

Ali e ao cabo de alguns anos, encontrei duas pessoas, que faziam as mesmas perguntas que eu fizera: 

“Por que será que eu dou aula tão bem dada e há alunos que não aprendem?” 

Foi, então, que aconteceu algo inusitado. Como quaisquer outros professores, éramos profissionais competentes. Porém, se do modo com a escola funcionava negava a muitos seres humanos o direito à educação, a escola não poderia continuar a ser gerida desse modo. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz. 

Foi, então, que começamos a acolher jovens evadidos de outras escolas, alunos “indisciplinados”, expulsos de outras escolas, alunos “com dificuldades de aprendizagem”, e tomamos consciência da necessidade de cuidar das nossas dificuldades de ensinagem.

Diziam sermos uma “escola para deficientes”. Chamaram-nos loucos, lunáticos e outros epítetos que, por pudor, não irei reproduzir. Quando fiz as primeiras intervenções públicas, mais do que dizerem que o projeto era um arroubo de jovem professor, diziam-me que, quando eu fosse mais velho, iria ganhar juízo. 

Felizmente, não ganhei…

Por: José Pacheco

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