São Martinho do Porto, 29 de setembro de 2041
Ficastes “com a pulga atrás da orelha”, quando, numa cartinha, “levantei o véu” que cobria os bastidores da Escola da Ponte. Disse-vos que, algum dia, vos contaria a história dessa escola.
“A escola com que sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir” foi resultado do encantamento sentido pelo amigo Rubem, que a viu com olhos transbordantes de sonho. Poeticamente, a divulgou, citando Pessoa: “Amei-te muito antes de te conhecer”. Mas, quem não soubesse da sua gênese poderia quedar-se por uma representação mítica dessa escola.
Quem a visitasse a Escola da Ponte, nos idos de vinte, não suspeitaria de que ela, também, fora feita de sofrimento e de resiliência. Professores e crianças foram objeto de perseguição e prejuízo. No início do projeto, as crianças cuidavam com muito desvelo de uma horta e de um “hospital dos animais”. Certo dia, encontramos a horta destruída e os animais mortos. Com o sangue das inocentes vítimas, os autores da façanha pintaram na parede da escola a frase “Morte ao professor”.
Nos seus primórdios, a escola nem sequer tinha um espaço a que se pudesse chamar banheiro. O prédio onde o vosso avô ensinava a aprender era uma construção do século XIX, reconstruída em 1918. Mas, como escolas não são prédios, os bairros da Ponte Nova, de Santo Honorato e das Fontainhas passaram a ser o chão da escola.
Em “freinetianas aulas passeio”, entre a bouça de Bom Nome e a Bouça do Rex, com o Doutor Queirós, as crianças aprenderam que o nosso primeiro rei havia nascido… em Vila das Aves. Pesquisando, descobriram que a sua terra, contrariamente ao que pensavam os avenses, não era “das Aves” (dos pássaros), mas “dos Aves” (das águas). E, analisando ao microscópio água recolhida nas águas desse rio, resolveram fazer um projeto de despoluição de um patrimônio comum usurpado por interesses privados. Os jornais da escola desse tempo disso nos falavam.
Apesar dos pesares, a Ponte provou haver utopias realizáveis, inevitavelmente, entrando em rota de colisão com as “autoridades”. Esbarrava num sistema ancorado num discurso político assente num pseudo-rigor, numa falsa exigência. Não desejávamos o confronto. Propusemos o diálogo. Foi-nos negado. Fomos prejudicados de muitas formas. Mas não desistimos.
Muitas escolas despertavam para a necessidade de mudar. Em 76, éramos doze, reunindo nas tardes de quarta-feira. Em 86, ano da publicação da lei de bases, restava um projeto: o da Ponte. Os restantes tinham sido destruídos.
Nos idos de vinte, voltamos a reunir às quartas-feiras, ajudando professores, que tomavam consciência da falência do modelo educacional em que tinham sido formatados. Já não eram doze, eram centenas de educadores dando forma concreta aos projetos das suas escolas e aos seus projetos de vida.
Disso vos falarei mais adiante.
Acolhei o beijo do avô José.
Núcleos de projeto despontaram em insuspeitos lugares. Educadores mudavam e comunicavam as mudanças aos seus “supeirores”. Apresentavam planos de inovação e requeriam, em troca, a autonomia necessária para os desenvolver.
Esta memória de idoso não conseguirá traduzir toda a potência do projeto emergente dos idos de vinte. Mas, tentarei, em próximas missivas, descrever conquistas e adversidades. À distância de setenta anos, ainda considero necessário recuperar memórias desse tempo sombrio. Insisto em que reflitamos sobre aquilo que nos dizia a Constituição. Ela consagrava o direito à educação, dizia-nos ser dever do Estado garantir a educação a todos os cidadãos, o que as escolas não garantiam.
Por: José Pacheco