Vale Covo, 1 de outubro de 2041
Queridos netos, as cartas, os telefonemas, as mensagens em redes sociais, os e-mails e outros depoimentos-denúncias, de que vos falarei nas próximas cartinhas, foram transformados em “estudos de caso”. Foram objetos de estudo de advogados e cientistas da educação, que, voluntariamente, se dispuseram a ajudar educadores, que mais não ansiavam, a não ser por cumprir a lei, fundamentando os seus projetos numa ciência prudente.
Continuarei a transcrição de um documento, até o completar. Apesar de a autora da mensagem já estar aposentada e ao abrigo de revanche de gestores autoritários, omito o seu nome.
“Logo no primeiro encontro das Turmas-Piloto, convidei a minha diretora e a coordenadora, mas não demonstraram interesse. Todas as vezes que tentei apresentar a proposta para a formação da turma-piloto na escola, recebi negativas sem fundamento. Nesse processo, minha autonomia e minha prática foram desconstruídas aos poucos, ao ponto de a própria Secretaria de Educação, na pessoa de uma assessora, ir até à escola fazer uma reunião comigo, me “orientando a entrar na dança da escola”. Ou seja, a não continuar com minhas “humildes tentativas de pesquisas” e sim, passar a fazer como todos os outros professores. A dividir a demanda de planejamentos de aula com outros colegas, de outros turnos e turmas, e passar a dar aulas planejadas por terceiros, como também planejar aulas para alunos que eu nem conheço, que estudam no período inverso ao meu, que não sei seus nomes, seus gostos, seus interesses etc.
Fiquei de perna mole nesse dia. Mas talvez você não se surpreenda, já deve ter visto casos piores. A justificativa que a assessora e gestoras deram, é a de que os alunos precisam receber as mesmas aulas, pois são da mesma escola (mesmo que não tenham sentido nenhum). Além disso, segundo elas, os pais reclamam quando há diferença nos planejamentos.
Outra justificativa é que essa estratégia, essa prática, facilita a vida do professor! Isso é uma prática de anos nessa escola, que tentei driblar, desde 2018, quando fui transferida para a escola. Depois disso tudo que relatei, me senti coagida, tive que obedecer às normas autoritárias, para não sofrer consequências maiores, pelo menos por enquanto. Parece até mentira! A Alice talvez fique assustada com tal prática em pleno 2021.
Desde o segundo semestre, tenho vivido essa realidade formatada, mas ainda tentando fazer alguma diferença às crianças e dar sentido para meus alunos, mas posso dizer que me sinto um pouco “morta” em alguns quesitos, fraca, fracassada, desmotivada, pois fui até caluniada por superiores da secretaria com alertas lançados contra minha pessoa, dizendo que sou perigosa e que não sou o que pareço ser… Enfim, são sentimentos que nunca tive em todos os meus 20 anos de docência. Minha crise! Espero um dia falar sobre ela e sobre o tempo da velha escola, das velhas mentes.
Não encontrando apoio em minha escola, me aproximei do diretor com o qual tivemos a reunião e que vai inaugurar a nova escola. As coisas estavam indo muito bem. Eu e o meu colega de projeto fizemos muitos encontros com o pessoal da escola, com a coordenadora, com professores, contribuímos no PPP da escola, nos estudos. No entanto, depois da bendita reunião com a Secretaria de Educação, o silêncio e o afastamento prevaleceram. O pessoal da escola desse diretor se afastou de nós e nunca mais responderam a mensagens, ou fizeram contato, apesar de todo vínculo e trabalho que foram construídos.”
Isto é: no “tempo do medo”, o oprimido continuava a legitimar as ações do opressor.
Por: José Pacheco