Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCLXXIX)

Rio de Couros, 14 de outubro de 2041

Em tempos que já lá vão, há muito, mesmo há muito tempo, contei-vos a estória de um pássaro, que vivia nas praias de Madagáscar, um pássaro meigo de nome Dodô. Era uma ave estranha pois, contrariamente a outras espécies, não temia a proximidade dos homens. E, por não os temer, a sua espécie foi exterminada. Homens ignorantes e cruéis – que também os havia nesse tempo – os perseguiram e mataram. 

Um livro de Carrol, que nos fala das aventuras de uma Alice, descreve o paradoxo do pássaro Dodô. Depois de um dilúvio causado pelas suas próprias lágrimas, a Alice chegou a uma praia onde encontrou vários animais, todos eles encharcados e tremendo de frio. O pássaro Dodô sugeriu que fizessem uma corrida, para se aquecerem. Todos começam a correr, cada qual para seu lado, cada qual escolhendo o seu próprio percurso.  

É fácil de ver que todos os percursos eram diferentes, dependendo da vontade e gosto de cada um dos animais. Quando, no final da corrida, todos estavam quentinhos e a salvo, perguntaram ao pássaro Dodô quem teria sido o vencedor. Como cada corredor correu como e por onde quis, o pássaro Dodô declarou que todos tinham sido vencedores das suas próprias corridas.  

Raros eram os seres humanos que entendiam a subtil sapiência dos pássaros. Mas eu sabia vós compreenderíeis a lição. Sabia que o vosso pai vos ensinara a escolher caminhos. Imaginava que os vossos caminhos se iriam cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sabia que, na vossa tenra idade, não estáveis condicionados por sentidos obrigatórios, nem contaminados pela vertigem das ultrapassagens. 

Vós soubestes reinventar venturosos mapas, respeitando aqueles que optavam por inventar os seus.  A ideia da divergência de percursos, fossem eles itinerários paralelos ou alternativos, era tão antiga como a imposição das veredas, por onde corriam à desfilada e em atropelo jovens pássaros aprendizes da perseguição de fugazes pódios e honrarias. 

O mais certo seria que, nas vossas deambulações, vísseis passar pequenos gansos recém-saídos do ovo, seguindo um homem como se fosse o seu pai-ganso. Um sábio chamado Lorenz fez essa experiência. E a Etologia dizia-nos haver pássaros que seguiam o bando que lhe trouxesse maiores vantagens, ou que mudassem de rumo, ao sabor das aragens. Também havia quem seguisse um qualquer Flautista de Hamelin, na direção do abismo. Tudo porque alguém inventara a… hierarquia.  

Na estória, que vos contei, há muito tempo, falei-vos de cidades indefesas, onde reinava o medo e a desesperança. Porém, aquilo que, para assustadiços pássaros, poderia constituir motivo de profundos receios foi para a gaivota das estórias, que este avô vos contou, uma presença apaziguadora, uma promessa de tempos prometidos, em que o lobo pastaria com o cordeiro. Falei-vos de tempos anunciados, de um tempo em que os abutres, à míngua de pútridas carcaças, se transfiguravam vegetarianos. De um tempo em que o Tigre e o Eufrates não mais seriam sobrevoados por terríficas aves, mas por voos serenos, rumo ao Éden, que os textos sagrados situaram nas terras que foram da antiga Suméria… onde a hierarquia fora “inventada”. 

Há milénios, Aristófanes escreveu uma peça de teatro. Nessa peça, as aves detinham qualidades dos humanos seres e por aí nenhum mal viria ao mundo, bem pelo contrário. O imaginar a humana imperfeição detentora de aéreos dotes nos inquietava e aterrorizava, se invocássemos a chuva mortal derramada por pássaros metálicos. Mas, já vivíamos um tempo em que os ares se cobriam de pombas transportando ramos de oliveira.

 

Por: José Pacheco

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