Cem Soldos, 15 de outubro de 2041
Era uma escola muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada…
Era assim que o mito se constituía. Todo mundo falava daquilo que a Ponte não tinha. Mas… o que teria?
Outro dos mitos criados em torno do projeto estava aquele que dizia que as crianças faziam só aquilo que queriam. Errado! Os jovens queriam aquilo que faziam, pois atribuíam significado ao estudo, ao que era objeto da sua pesquisa. Aliás, eu nutria uma particular preocupação perante práticas “alternativas” de näo-diretividade ingénua, que deixavam as crianças entregues à sua sorte, ou a uma inconsequente ociosidade.
A Ponte constituiu-se em espaço de produção autônoma de conhecimento, de uma autonomia construída a na relação, pois ninguém seria autônomo sozinho. O autoconhecimento permitia estabelecer vínculos, reconhecer a existência do outro. E um conjunto articulado de dispositivos pedagógicos – que até lhe davam uma feição behaviorista, ou mesmo neo-behaviorista – fazia da Ponte a escola mais estruturada que eu conheci.
Nada acontecia por acaso, havia outro tipo de planejamento. Não planejávamos a vida do outro. Assegurávamos a gestão da imprevisibilidade, ensinávamos o outro a planejar a sua vida, a conceber o seu projeto de vida. Os jovens eram mais do que alunos, agiam na dignidade de sujeitos de aprendizagem.
Por isso, considerei ridículos, quer o conceito, quer a prática do “projeto de vida”, previsto no chamado “novo ensino médio” dos idos de vinte. Mais uma vez, o ministério era useiro e vezeiro na apropriação de modismos, cuja aplicação tresandava a instrucionismo requentado.
E mais não digo acerca das inúteis (e dispendiosas) iniciativas ministeriais, que tanto prejuízo causaram. Passo a recordar, aqui, alguns dos mais de setenta dispositivos pedagógicos criados na Escola da Ponte, partindo de perguntas formuladas por visitantes e formandos, juntando-lhes as respostas dadas por professores, alunos e seus familiares. Por exemplo, estas:
“Tenho o firme propósito de começar alguma mudança dentro da minha sala de aula. Gostaria de saber de você qual desses projetos eu poderia introduzir logo no início do ano. O grupo de Responsabilidades?”
Eis a resposta dada por um professor da Ponte:
“Louvo a coragem de querer introduzir mudanças na sua sala de aula. Um dos requisitos de qualquer bom educador é ser destemido. A primeira batalha já foi vencida por si, pela vontade de agir. Aceitar este desafio é de se valorizar. Existem muitos professores que, infelizmente, compactuam com o sistema e agem mecanicamente, sem refletirem e sem efetivarem qualquer transformação.
Sem querer sobrevalorizar umas opções em detrimento de outras, eu talvez iniciasse o ano com um desafio: indagaria os alunos, no sentido de se perceber o que estes mudariam na escola, se eles a gerissem (levantamento de necessidades, problemas, desejos); registraria a informação partilhada num lugar onde todos pudessem visualizá-la. A partir daí, tudo pode acontecer: a criação de Grupos de Responsabilidade, de Grupos de Trabalho (dentro da turma), a criação de uma listagem de Direitos e Deveres, ou a primeira reunião de um Assembleia.”
O autor da pergunta insistiu:
“Também gostaria de pedir que, se possível, apresentassem exemplos das regras aprovadas pelos alunos e dos dizeres do “posso ajudar”, do “preciso de ajuda”, das “responsabilidades”.
As perguntas sucediam-se, em cascata, num dialogar constante. E a Ponte, sempre disponível, informava, esclarecia.
Porque me pedistes, disso vos falarei nas próximas cartinhas.
Por: José Pacheco