Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXVI)

Rio das Ostras, 20 de agosto de 2041

Aquilo que vos descrevi na cartinha de ontem foi obra de uma equipe de educadores éticos e aconteceu muito antes da incursão da Ferrero no construtivismo. As obras dessa extraordinária educadora, como “Psicogênese da Língua Escrita” revelaram processos de aprendizagem, que questionaram métodos tradicionais de alfabetização, colocando o foco da aprendizagem nos mecanismos cognitivos utilizados na iniciação à leitura e à escrita.

O processo de letramento é um processo de inclusão. O aprender a ler é feito de desejo e esforço, e a linguagem é aprendida socialmente, nas interações verbais, como nos avisam Bakhtin e Freire. Quando, uma professora reprodutora do método fônico quis ensinar aos seus alunos a letra fê, recorreu a uma daquelas frases de antologia, que só traduzem desprezo pela inteligência e criatividade da infância. Leu para toda a turma, ao mesmo tempo e do mesmo modo:

A mãe afia a faca.

A Fia sou eu!” – exclamou uma aluna.

Não é nada disso, Jéssica! Eu disse afia! Afia é como… amola. Percebeste?” “A mola?” – perguntou a aluna, com cara de nada entender.

Sim. Amola! Já vi que compreendeste!” – concluiu a mestra.

Por este fonético equívoco e por outros é que alguém chegou a dizer que a linguagem era fonte de mal-entendidos.

Comunicar é uma palavra que vem do latim “communicare”, pôr em comum, relacionar-se. Pressupõe o estabelecimento de laços. Mas como se poderia atingir esse desiderato, se as falas trocadas entre quem as emitia e quem as recebia estavam, quase sempre, em diferentes “comprimentos de onda”?

Enquanto visitava uma escola, perguntei a um pequenito:

Estás a ler essa revista?

Não. Eu estou só vendo e cortando. Não estou lendo!

Sábio moço! Tinha consciência de que cortar de uma revista, palavras “que tivessem o ca e o co”, como mandara fazer a professora, não era o mesmo que ler. A criança nunca lera o Boff, mas sabia que cada leitor era coautor, que cada leitor lia e relia com os olhos que tinha, porque compreendia e interpretava o mundo a partir do mundo que habitava.

Nos idos de vinte, a maioria dos professores continuava a reproduzir o instrucionismo e a condenar milhões de alunos ao analfabetismo. E se deixavam envolver em debates estéreis como os que visavam definir qual era “a melhor idade para começar o fundamental”. Talvez por isso, a alfabetização de adultos crescesse exponencialmente.

Já adultos, os alunos sabiam por que queriam aprender a ler:

Eu vim aprender a ler, para poder ler os bilhetes que estão nos bolsos do paletó do meu marido”.

Mas, também os mais jovens nos davam lições de pedagogia. Como a Luciana, do oitavo ano:

Ler é saber em silêncio”.

Em 1880, um punhado de irlandeses travou guerra contra um administrador chamado Boycott. O personagem (de cujo nome advém o vocábulo “boicote”) foi obrigado a abandonar o país. Creio ter sido mais fácil aos irlandeses terem-se visto livres do dito Boycott do que uma escola conseguir detectar e anular os boicotes que dentro dela se sucediam, pondo em risco a concretização do seu projeto (que escassos professores conheciam…) e a aprendizagem da leitura e da escrita.

Queridos netos, eu sei que estou sempre a dizer o mesmo. Mas não desisto de fazer lembrar pecados velhos. Mais de trinta anos de prática numa “sala de aula” diferente, onde todos aprendiam a ler “na idade certa” fizeram com que eu visse a “realidade” com diferentes olhares. E, se vos falo de situações de antanho, é porque acredito que, em 2041, lentamente, a memória desses conturbados tempos se vai apagando. Não poderemos correr o risco de esquecer.

 

Por: José Pacheco

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