Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXI)

Águas Lindas de Goiás, 25 de abril de 2041

Hoje, são passados 66 anos sobre uma leda madrugada. Ficai tranquilos, que não irei dizer-vos o que fiz, nem onde estava, nessa leda madrugada. Falar-vos-ei apenas de um povo, que tinha adormecido fascista, no dia 24, e acordado democrata, no dia 25. E que, por muitos anos, continuaria apático (ou desatento?) face a “tenebrosas tentações”.

Durante muitos anos, ensaiei coros de igreja, e até cheguei a cantar sete missas ao domingo… Por essa altura, eu era secretário do Coro da Sé Catedral do Porto, um coro de música sacra, que marcou uma época, dada a sua excelente qualidade. A maioria dos coralistas era de classe social média-alta, vivia em pequenos palácios. Eu vivia na Ilha dos Tigres, um cortiço onde gente digna e de “algumas posses” convivia com toda a sorte de deserdados da vida, onde as pessoas mais belas que conheci partilhavam o seu quotidiano com a violenta fealdade da prostituição.

Operacional da Revolução dos Cravos, saído da clandestina luta contra um salazarento regime, nos ensaios do Coro, conheci a “nata” do regime deposto. Enamorei-me da filha de um grande proprietário rural. E ela me levou a conhecer o resto da família, apresentando-me como “futuro marido”.

Netos queridos, perto de fazer noventa anos, sou uma autêntica ruína. Mas, naquela altura, até era um moço bem parecido. E ninguém sabia da minha modesta origem. Já havia compreendido que a organização social se baseava no princípio “cada macaco no seu galho”. Caíra na besteira de levar à Ilha dos Tigres a minha anterior namorada. A sordidez dos gestos, o eco de impropérios, a sujidade por toda a parte, as insinuações dos meus colegas de cortiço – “Ó Zé, já comeste essa gaja?” – as latentes ameaças de proxenetas, causaram tamanho impacto, que o namoro acabou nesse dia.

No dia em que a minha namorada me fez entrar num palacete repleto de luxo e ostentação, entrei em crise. Os seus pais eram pessoas delicadas, gente de paz. Aliavam um catolicismo tradicional a uma bondade natural, o que fazia deles pessoas admiráveis. A conversa fluiu natural. Creio ter causado boa impressão. Na “hora do chá”, me encheram de encômios e me convidaram para passar uns dias com eles na Casa da Praia. Afáveis, simpáticos, me rogaram que voltasse no domingo seguinte. Dei um beijo no rosto da minha namorada e dei costas ao palacete, sem olhar para trás. Nunca mais voltei aos ensaios do Coro.

Ainda hoje e em todas as manhãs que ainda poderei merecer, ponho em causa as minhas crenças, ponho em dúvida todas as minhas certezas. Porém, nos idos de setenta, eram sólidas as minhas convicções: aqueles que suportavam o regime ditatorial eram inimigos do meu povo sofredor. Tinham causado a prisão do meu pai e a morte da minha mãe. Eram meus inimigos. No dia em que convivi com o “inimigo”, as minhas mais fortes convicções esmoreceram.

Quando me perguntavam por que razão enjeitei uma promissora carreira de engenheiro e decidi enveredar pela profissão de professor, eu dava esta resposta:

“Quando decidimos sermos professores, fazemo-lo por uma de duas razões: por amor, ou por vingança. Eu decidi ser professor por vingança. E me fiz professor por amor.”

Adversidades dos primeiros tempos da profissão me levaram a banir dualismos e fundamentalismos pedagógicos. Busquei uma “terceira via”, que me protegesse de maus exemplos de praticistas e teoricistas. Após o “25 de Abril”, os primeiros quase me causaram a morte. Os segundos continuaram a pecar por omissão. Vivendo no Olimpo das teorizações de teorias, contribuíam para adiar a emergência de uma nova educação.

Por: José Pacheco

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