São Paulo, agosto de 2039
Netos queridos,
Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:
“O Governo pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno cheio de maldade não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer restabelecer a ordem e não consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Que interessante é uma escola bem disciplinada! Mas onde a há que deixe de ser perturbada por algum de entre muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrompendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.
Esta notícia foi publicada em maio de… 1887.
Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de 1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disciplina com uma palmatória. E, quando a professora já estava cansada, mandava um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem devagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam “tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola e medo de ir para casa”.
Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvimos, mas aprendemos o outro – muitos alunos se transformaram em adultos medrosos e egoístas. Dado que a aprendizagem acontece por imitação e pelo exemplo, políticos e outros bonsais humanos, que ignoravam a existência de uma educação humanizadora, impuseram a escola da violência simbólica, a escola “militarizada”, a mesma de que foram vítimas.
Há vinte anos, não nos surpreendíamos quando, no fim de uma sessão da Câmara, o chão do plenário ficava coberto de lixo, víamos o chão do auditório juncado de copos plásticos e outros detritos, ali deixados por ilustres deputados.
A escola hegemônica e “militarizada”, que tínhamos, ia semeando ignorâncias e outras violências. Ela fora concebida no início da Primeira Revolução Industrial, correspondendo a necessidades sociais da Prússia Militar: treinar jovens para a guerra, jovens obedientes a um regime disciplinar inquestionável, respeitadores de uma hierarquia imposta. A escola nasceu “militarizada” e os professores do século XIX não sabiam que a autoridade não rimava com autoritarismo. Que a escola não deveria preparar para a cidadania, mas que se aprende cidadania no exercício da cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, na autodisciplina, na verdadeira disciplina, que não resulta de imposições e submissões, mas pressupõe o exercício do diálogo, a desocultação de perversos modos de relação.
Um século após a publicação do texto na revista O Ocidente, no ano de 1988, uma “Proposta Global de Reforma” dizia-nos que o adestramento não define a educação e que a educação é incompatível com a organização autoritária da vida. Mas, há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a um “regresso ao passado”, assistimos a novas “militarizações”.
O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os tempos são outros… Disso vos falarei em próxima carta.
Com amor,
O vosso avô José.
Por: José Pacheco