Estórias da Velha Escola (XVIII)

Monsanto, outubro de 2039

Netos queridos,

No Portugal de há cerca de vinte anos, uma lei abria caminhos de mudança. A
portaria 181 de 2019 propiciava a concepção de uma nova construção social
de educação. O “plano de inovação”, que essa lei propunha que se elaborasse,
justificava-se por fazer cumprir os princípios e finalidades da educação nacional
e os objetivos do ensino básico e secundário, conforme expresso na
Constituição e na Lei de Bases. Assumia-se o princípio de que era preciso
rever os conceitos de educação e de aprendizagem, bem como reconfigurar as
práticas escolares.

Menos de uma semana decorrida sobre a publicação da portaria, li uma caterva
de “planos de inovação”, com uma sensação de dejá vu. A redação era
irrepreensível, sem erros ortográficos, nem de pontuação. Porém, de inovação
esses planos nada continham. Guardei alguns no meu museu particular e
comentarei o seu conteúdo, colocando em itálico as citações.

O texto era pródigo em “lugares comuns” do discurso pedagógico: práticas
pedagógicas inovadoras; desenvolvimento de competências do século XXI,
como o pensamento crítico, a comunicação (…)atender aos diferentes ritmos e
necessidades dos alunos; promover o trabalho autónomo e diferentes estilos
de aprendizagem centrados no aluno… Os “planos” estavam repletos de jargão
científico e de citações de autores consagrados: o professor gere o currículo,
estabelece o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem; o papel do
professor na definição de estratégias de ensino-aprendizagem diversificadas e
do uso da tecnologia de uma forma crítica e inteligente; o professor partilha
com os seus pares estratégias, recursos e práticas; como profissional reflexivo,
comprometido e empenhado com a sua profissão.… e por aí seguia um
relambório, que confirmava que a sofisticação do discurso contrastava com a
miséria das práticas.

Em algumas escolas da “flexibilidade curricular” passava-se de trimestre para
semestre, utilizando uma bolsa de horas para criar mais uma disciplina,
colocando mais uma hora aqui e menos uma hora ali, como quem fizesse
contas de mercearia. E alguns dos “planos de inovação” apelavam à
gamificação, o que sugeria que a escola se transformasse num imenso casino.

Por essa altura, o Low-Performing Students, da OCDE dizia-nos que não havia
país participante do PISA (era um ranging de países, com referência aos
resultados obtidos em provas) que pudesse afirmar que todos os seus alunos
de 15 anos de idade alcançavam um nível de linha de base de proficiência em
matemática, leitura e ciência. Reconhecia-se que o modelo instrucionista – o da
escola da aula – era incapaz de a todos assegurar o direito à educação.

Cingapura, o primeiro lugar do PISA, extinguia os rankings. E na Catalunha, os
colégios jesuítas extinguiam as aulas. Era sabido que classificação não era
avaliação e que inovação não combinava com sala de aula, mas era afirmado
nos ditos “planos de inovação”: todas as salas de aula podem ser inovadoras.
No início deste século, o amigo Nóvoa dizia: no futuro, não haverá salas de
aula. Mas os “planos” falavam de míticas salas de aula do futuro. E, entre
práticas fósseis e tímidas aproximações ao paradigma da aprendizagem,
decorria o projeto da “flexibilidade curricular”. Por esse caminho, se poderia
perder mais uma oportunidade de mudança. Do que aconteceu vos darei
notícia em próxima carta.

Com amor, o vosso avô José

Por: José Pacheco

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