Estórias da Velha Escola (XVII)

São José do Rio Preto, novembro de 2040,

Queridos netos,

O burro do Manuel Pândego merece mais uma referência nestas cartas, porque ele não era apenas justo, ele era sábio. E um sentimental, como, mais adiante, iremos ver.

Se há quem afirme ser a pedagogia uma arte e uma ciência, juntemo-lhes o quanto baste de ternura, sem a qual o ato de educar não passa de um ritual sem sentido.

O burro do Manel Pândego admirava a doçura que a professora Joana punha nos gestos e compreendia que das zangas dos catraios não restava azedume que o tempo não curasse. Pelo facto de (na qualidade de burro) lhe ser vedado o acesso à sala de aula, quedava-se pela observação de aprendizagens que a escola produzia, sem que se apercebesse de que as produzia e sem cuidar de avaliar a produção. Ainda que fosse considerado burro, entendia – bem melhor do que os que tal não se consideram! – que uma brincadeira de crianças pode ser geradora do maior desenvolvimento cognitivo, social, afetivo, emocional… Tanto quanto a esperteza de um burro pode discernir, reconhecia num improvisado futebolum espaço de socialização por excelência.

O recreio estava prestes a acabar e o jogo estava empatado. Mais empurrão menos chapada, as equipas concordaram que a canelada que o Tónio Melro dera no Pita Borrada era digna de ser sancionada com pénalti. E remate do Neca Gaio era golo certo. A claque rejubilava. A professora Joana já chamava para dentro. O ambiente estava de cortar a respiração…
O Neca Gaio tomou balanço e encheu o pé num tiro certeiro. Mas a trajetória da bola foi gloriosamente travada pelo Eurico. Para que se respeite a verdade dos factos, acrescente-se que a defesa não foi nada convencional. A bola, desviada pela Mafalda, foi-lhe ao nariz…
A Mafalda era a única rapariga da turma com estatuto de futebolista. Era muito requisitada por ambas as equipas para ocupar a posição de zagueira. Jogava sempre à defesa (no futebol como no resto…). Interpretando à letra a táctica que diz ser o ataque a melhor defesa, se deixava passar a bola, não deixava passar o adversário. Foram muitos os joelhos esfolados e respectivas expulsões acompanhadas de queixinhas à professora.

Temendo as represálias da mestra, a Mafalda manifestava o maior dos arrependimentos. Para quê? A professora Joana a acolhia na ternura dos seus braços e trocava a reprimenda por um abraço. Nem uma palavra de reprovação, apenas um olhar fofo de esperança. A Mafalda – considerada pelos vizinhos como “durona e arrapazada” – acabaria por perceber que o amor e a paciência operam milagres. Foi a primeira a socorrer o Eurico, sem se importar que o seu lencinho ficasse manchado de sangue.

Enquanto a turma regressava ao afã habitual, o Eurico era acolhido pelas mãos carinhosas da professora Joana, que o curava das lesões do corpo e do espírito. Testemunha discreta de pequenos dramas, logo que ficou sozinho, o burro deixou escapar algumas lágrimas, que deslizaram pelo pêlo encharcado.

O Manel Pândego justificava o frequente lacrimejar do burro com o facto de o pasto ser desabrigado e facilmente o velho animal se tomar de resfriado. Enganava-se, mais uma vez. A lágrima que aflorava ao canto do olho era pura emoção, reflexo da estima que nutria pela pequenada e, em particular, pela professora Joana.

Que aquilo não era apenas uma escola sabia o burro (um verdadeiro doutor!) que, por nunca poder chegar a lugares de decisão, sabia da realidade educativa próxima muito mais que os que sobre ela decidem à distância.

Recebei um beijo do vosso avô José.

Por: José Pacheco

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