Estórias da Velha Escola (L)

São Tomé de Negrelos, fevereiro de 2040

No fevereiro de há vinte anos, o meu amigo David palestrava no Centro Cultural de Vila das Aves. Mesmo ao lado do local onde, há 64 anos, o projeto Fazer a Ponte nasceu. 64 anos! A vida é breve. Na minha provecta idade, sinto que o tempo foge,enquanto a eternidade avança, se aproxima o tempo de partir. Dei-me conta de que esta é a quinquagésima carta e apresso este epistolar exercício de vos passar testemunho de prodígios e ignomínias.

Nesse mês do distante 2020, eu preparava a mala, para ir até Portugal, quando recebi mais um exemplar do Entre Margens, um belo jornal, que o vosso avô e outros avenses criaram em meados da década de 80. Li o artigo do meu amigo Adélio. Nesse belo naco de prosa, evocava a sensível Professora Laura. Professora com letra maiúscula, que bem a merecia. Com “uma voz de abraço”, confortava o prevaricador, lembrando-lhe que ninguém conseguia ser forte o tempo inteiro e que tropeçar nem sempre era pecado. O Adélio também nos falava do Padre Fonseca, por lhe inculcar o gosto pela poesia. O Adélio era um poeta da prosa eme tranquilizava, mostrando que eu não fazia falta alguma nas Terras de Entre os Aves, de onde partira para a minha diáspora. Mas, lamento não ter estado em Portugal, quando do lançamento do seu primeiro livro, para lhe manifestar a minha gratidão.

Nesse fevereiro, projetos renasciam e a Escola da Ponte recebia o Diploma de Qualidade do Programa Eco Escolas – Bandeira Azul da Europa. Mas, do outro lado do oceano, bonsais humanos destruíam projetos. Negrelas sulistas agiam como as de antanho, impedindo que se elevasse a alma à altura do sonho.

O Projeto Âncora se extinguia em Cotia e os educadores, que haviam criado esse projeto,lançaram âncoras em outras escolas, continuando a gerar seres sábios e pessoas felizes. Partilhavam a caminhada com companheir@s (nesse tempo de homofobia e machismo exacerbado, alguém inventou este resiliente semi-neologismo), partilhando, sobretudo, o alimento da alma companheiro vem do latim cum e panis, aqueles que partilham o pãoe, se o corpo do projeto jazia em Cotia, a alma do projeto migrava para outras paragens. Em Cotia, como na Brasília desse tempo, imperava o medo e grassava a corrupção. E, ao cabo de meio século, o vosso avô reaprendia a lidar com canalhas.

Queridos netos, bem sabeis que adoro metaforizar. Mas, desta vez, as metáforas são tristes, refletem a indignação de ver pontes interditadas e âncoras arrancadas. Cansei-me de ver destruir projetos. Cansei-me de assistir à legítima deserção de maravilhosos educadores. Cansei-me de os ver adoecidos, dependentes de psiquiatra. A sua generosidade fora esmagada pela razão da força, enquanto a força da razão se esbatia nos esconsos corredores de secretarias, onde malfeitores conspiravam para manter o genocídio educacional, que perpetravam.

A vida é um eterno, um contínuo recomeço. Decidimos refazer pontes e fincar âncoras sobre as ruínas de um sistema de ensino obsoleto. Educar sempre foi um ato de amor e, portanto, um ato de coragem, como diria o Paulo. Muitos educadores se consciencializaram da necessidade de modificar as suas práticas, para garantir a todos o direito à educação. Decidiram ser éticos. À prepotência responderam com um desafiador fazer, com o cumprimento da lei e, sobretudo de uma lei chamada “projeto político-pedagógico”. Responderam a um sistema corrupto com o exercício de um múnus profissional pautado na lei e fundamentado numa ciência prudente.

Disso vos falarei nas próximas missivas.

Por: José Pacheco

 

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