Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LI)

Algures, em fevereiro de 2040,

Queridos netos,

Esta deveria ser a derradeira carta de um já extenso rol. Mas será a primeira de um novo ciclo e espero que tenhais paciência para partilhar memórias deste idoso e resiliente educador.

Pela sua leitura, concluireis que, como escrevi no livrinho para o Marcos (*), os projetos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses projetos também se alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam anjos pela Terra? Também confirmareis que, como no livrinho para a Alice (*), eu deixo as histórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. A vida é um constante recomeço, sem princípio nem fim.

Nas próximas cartas, contar-vos-ei o que aconteceu após o dia 7 de abril de 2020. Por agora, apenas vos direi o que senti, quando, há cerca de trinta anos, visitei um hospital de crianças (*), onde a humanização da saúde e da educação acontecia. Numa das enfermarias, uma professora estava sentada ao lado de uma cama e lia um livro para uma criança recentemente operada. Enquanto os enfermeiros mudavam o penso, a professora afagava os cabelos da chorosa criança. Respirava-se carinho. Todos se conheciam. Todos eram chamados pelo nome. Quem era o médico? Quem era o voluntário? Quem era o educador?

Chucran! – é o mesmo que “obrigado”, mas em libanês.  No hospital, o Rafael descobria as suas raízes culturais. A mãe, de véu cobrindo os cabelos e o rosto, estudava a história da terra onde nasceram. E a professora ensinava português ao Rafael, enquanto a mãe do Rafael ensinava libanês à professora. Num recanto entre duas enfermarias, um pai ajuda o seu filho a preparar uma pintura, enquanto um voluntário muda a garrafa do soro.  Eram curadas as mazelas do corpo e as do espírito.

O Luís tinha quatro anos. Vivia no hospital quase desde o dia em que nascera. Sofria de doença degenerativa. Só conhecia o mundo lá de fora através da janela da enfermaria e através do mundo que as professoras lhe descreviam. A sua melhor amiga contraíra pneumonia e morrera. O Luís quebrou um silêncio de vários dias:

Por que é que a Carol nunca mais veio brincar comigo?

A voluntária encostou o rosto do Luís no seu colo. Um longo afago foi a resposta. E eu evoquei o último capítulo do “Pequeno Príncipe”:

Agora já me consolei um pouco. Sei que voltou ao seu planeta; pois, ao raiar do dia, não lhe encontrei o corpo. Não era um corpo tão pesado assim…

O vosso avô estava perto da morte e tão perto da vida! Como era possível tão pouco espaço conter tanta humanidade?

Envio-vos esta carta, após ter tomado a decisão de manter viva esta troca epistolar e enquanto escuto o velho Bobby McFerrin entoando o “Arioso” de Bach. E vos deixo com palavras do saudoso Pablo Casals: Eu estou sempre a renascer. Cada nova manhã é o momento de recomeçar a viver. Há oitenta anos que eu começo o meu dia da mesma maneira – e isto não significa uma rotina mecânica, mas algo de essencial para a minha felicidade, uma maneira de retomar o contacto com o mistério da vida.

Com Amor,

O vosso avô José.

Por: José Pacheco

(*)

Para Alice, com amor. São Paulo, Cortez Editora.

Para os filhos dos filhos dos nossos filhos. São Paulo, Papirus.

Dicionário das Utopias da Educação. Belo Horizonte, WAK.

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