Cacela Velha, maio de 2041
Querida Alice e querido Marcos,
O prometido é devido… Começo esta missiva, explicando-vos (ou fazendo-vos recordar) o que era o facebook. Talvez já não vos recordeis de o terdes usado na vossa juventude.
No início do século, precedendo um tempo de pós-verdade, alguns estudantes de Harvard inventaram uma “rede social”. Nela, os usuários criavam perfis, trocavam mensagens privadas e públicas, fofocavam. Mais tarde, ela foi usada por gente sem escrúpulos semeadores e replicadores de fake news. Poderosos “sistemas de ensino” aproveitavam essas rudimentares tecnologias digitais de informação e comunicação, para congelar e vender inúteis “videoaulas”. E foi nesse tempo que surgiram as famigeradas startups…
Na época chamada de “bolha da internet”, entre o fim do século XX e o prelúdio do século XXI, o termo startup começou a ser usado por grupos de pessoas criativas do campo do empreendedorismo e do capitalismo selvagem. Mas a intervenção dessas startups no campo da educação foi desastrosa, quando contribuíram para confundir inovação com paliativos do modelo instrucionista.
Gurus do digital, empresários e outros debutantes da educação apropriaram-se do termo “inovação” e o deturparam, apoiados por autores de teses sobre inovação, sofisticações teóricas aprovadas por bancas constituídas por quem nunca inovara e legitimadas por instituições que raramente inovaram. Adulterado o conceito, converteram-no em slogan para fins mercantis, curandeirismo, espécie de magia branca, capaz de impressionar as massas, como diria o mestre Lauro. Mas, nesses tempos sombrios, havia quem resistisse, pelo que vos darei exemplo de boa utilização da Internet.
Charles Péguy foi um escritor francês, que faleceu em 1914, na Batalha do Marne. Num dos seus cahiers, escreveu: As escolas existem, disse Deus. Penso que é para desaprender. Inspirado nesse aforismo, há cerca de vinte anos, o meu amigo José publicou no seu facebook um texto com o título “Uma radical desaprendizagem”. Encontrei-o num velho arquivo de computador. Não “viralizou”, porque não convinha a quem, sob o manto diáfano de pseudo-inovações, mantinha a escola e a educação no domínio da ensinagem. Mas não resisto a reproduzi-lo:
Milhares de páginas registam o que é preciso ensinar. O que o preciso aprender. Milhares de horas se despendem na prossecução destes objetivos. Mas antes disso há um vasto programa que é preciso realizar. O de desaprender: os modos de ver, de olhar, de respirar, de pensar, de tocar. O de raspar a tinta com que nos embotaram os sentidos, como dizia Caeiro. Pois, o que é aprender senão desaprender, mudar uma rotina, um hábito, uma crença?
Desaprender o modo magistral de dar aulas. Desaprender uma relação pedagógica fundada no medo. Desaprender a indiferença, a alienação. Deitar fora milhares de conteúdos que não servem para nada. Resistir à tentação de criar novos territórios disciplinares de clausura. A escola precisa de se libertar da imensa quinquilharia que a atormenta. Desaprender os modos tradicionais e formais de prestar os serviços públicos de educação. Ser cada mais pública no sentido de responder às necessidades, às expectativas, às urgências das pessoas. Liberta do jugo e da asfixia das credenciais. Da certificação obsessiva. Desaprender para ousarmos construir uma casa de humanidade.
Naquele tempo, como vedes, havia gente digna, avisada e que avisava.
Com amor (e continuando a desaprender para aprender),
O vosso avô José.
Por: José Pacheco