Estórias da Velha Escola (XIII)

Quinta do Conde, setembro de 2039,

Netos queridos,

Há uns vinte anos, andei por aqui, na companhia da Teresa e da Paula, duas maravilhosas educadoras, com quem também aprendi a criar comunidade. A recordação dessa boa companhia leva-me a contar-vos outra estória. Há por aí quem considere que os professores são criaturas em estado de graça, enquanto outros tendem a considerá-los uns desgraçados. Nem oito, nem oitenta. Os professores não são anjos nem demónios. São, como as outras pessoas, seres aprendentes. Se aprendem ou não, isso depende da vontade e da circunstância, como adiante iremos ver.

A Dona Glória trabalhava a dias em casa da Dona Licinha e era muito bem tratada. Não havia dia algum que a patroa lhe não deixasse sobre a mesa da cozinha o pagamento do serviço, uma chávena, um punhado de bolachas embrulhadas num guardanapo, o açucareiro e uma colher. Sob a colher, um papelinho com a recomendação de que não deixasse de a utilizar e não metesse no chá a colher que iria encontrar dentro do açucareiro. A professora Licinha bem porfiava na recomendação. Porém, quando voltava a casa, encontrava a colher do açúcar completamente envolvida no produto, numa placa dura que dificilmente descolava com a lavagem.

Só quando, por via de uma súbita enxaqueca, voltou para casa a meio da tarde, é que a professora Licinha descobriu que a Dona Glória não sabia ler. E, com o cuidado devido à situação, inteligente e atenta (como qualquer professora), a Licinha reflectiu sobre o episódio. E pensou que talvez tivesse alguma relação com um problema que vinha defrontando na escola.
Na escola da Licinha, as professoras tinham decidido dispensar os alunos do uso dos manuais. As queixas sucediam-se. A Dona Augusta, que era a auxiliar de acção educativa, servia de porta-voz à crispação dos pais:
Como é que podemos ajudar os catraios nos trabalhos de casa, se não temos livros para eles lerem a lição? Como é que os miúdos podem aprender se não tiverem livros?

Os mais atrevidos (ou assertivos, como agora se diz) iam mais longe no comentário crítico:
Estas modernices ainda vão acabar mal…

O ambiente naquela escola já não era dos melhores. E as professoras estavam prestes a ceder ao senso comum, de modo a não pôr em risco a sua sobrevivência profissional:

Que se lixe a pedagogia! Se os pais nos deram o seu dinheiro, deixemo-nos de modas. A ideia de comprar livros do Torrado, da Matilde e da Sophia fica para depois. Vamos mas é fazer a vontade aos pais. Compramos os manuais… e pronto!
A Licinha propôs que se fizesse uma reunião com os pais dos alunos, para resolver a situação. Os pais tinham correspondido ao convite. O horário correspondia aos seus interesses e ainda acabava a tempo da desobriga da missa vespertina. Mas a reunião não estava a decorrer do modo mais auspicioso. Às tentativas de persuasão da Licinha e companheiras, o pai do Chico Melro ripostava:

A senhora que me desculpe, mas não concordo com o que a senhora disse!

As professoras bem argumentavam que os manuais continham erros grosseiros, que o peso das mochilas era um perigo para as costas dos meninos etc. Bem insistiam num discurso de código restrito que lograsse chegar à compreensão dos pais, mas o pai do Chico Melro não desarmava:

Está tudo muito bem, as senhoras é que têm estudos e eu só fiquei com a terceira mal feita. Mas… os catraios aprenderem sem livros? Onde é que já se viu?

(continua na próxima carta)

Por: José Pacheco

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