Estórias da Velha Escola XXXI

Resende, novembro de 2039,

Alguém escreveu (não me lembro onde li…) que os engenheiros que conceberam as câmaras de gás e os médicos que coordenavam o genocídio nos campos da morte nazis foram “bons alunos” do ensino dito “tradicional”. Janusz Korszak, que foi professor e pereceu nas garras da besta nazi, escreveu: “a escola é um pobre comércio de medos e ameaças, boutique de bugigangas morais, botequim onde é servida uma ciência desnaturada, que intimida, confunde e entorpece.”

Se não tivesse acabado os seus dias num campo de extermínio, se lhe fosse concedido chegar aos nossos dias, o mestre Janusz não precisaria de retirar sequer uma vírgula à sua frase, para que ela se mantivesse actual. Em tempos sombrios, como os de há 100, ou os de há vinte anos, os “fundamentalistas” da escola “tradicional” (os que não admitem mais do que um modo de fazer escola) suspenderam a hibernação de tempos luminosos e revelaram o seu ódio à diferença. Aqueles que, no seu tempo, se aperceberam do cheiro nauseabundo da decomposição da escola “tradicional” e ousaram reinventá-la acabaram vítimas da ignorância e da maldade.

Pestalozzi foi humilhado. Tolstoi assistiu impotente ao encerramento da sua escola, por ordem do czar. Ferrer, que acreditava ser possível colocar humanidade no acto de aprender e ensinar, foi perseguido e executado no dealbar do século XX. O Estado Novo não partilhava dos ideais da Escola Oficina, e Adolfo Lima conheceu as agruras do Tarrafal.

Aires Gameiro dizia-nos que ”só os inconformistas com poder criador ajudam, em cada época, a quebrar algemas da sociedade, injustiças e cegueiras, que não deixam ver os outros como pessoas”. Mas, no tempo em que vós nascestes, eram raríssimos os que se arriscavam no submundo das escolas onde a mudança necessária se processava, porque a mediocridade e a maledicência espreitavam em cada esquina… Nos tempos sombrios que, então, atravessavamos, deveria ser atribuído um subsídio de risco aos professores que arriscassem defrontar o “fundamentalismo”. Deveria ser instituído um santinho padroeiro que protegesse as escolas com aspirações de mudança das investidas dos seus detratores.

Hoje podeis usufruir de uma boa educação, mas nem sempre assim foi. A mediocridade esteve no poder. Uma corrupção endémica e sindrómica quase destruiu as iniciativas inovadoras. Redes sociais manipulavam a opinião pública. Jovens ingenuos, se prestavam a servir obscuros interesses e o direito à educação transformava-se em mercadoria. Empresas vendiam paliativos ornamentados de projetos suportados em tecnologias digitais e generosos financiamentos. E, sob o diáfano manto de “novas tecnologias” prosperava o modelo de educação concebido no século XIX. Nesse caótico cenário, muitos dissidentes se refugiavam em “comunidades alternativas”, que nem sempre o eram…

Aquando da primeira apresentação da Nona Sinfonia de Beethoven, os “tradicionalistas” chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. O “inovador” trecho que hoje é conhecido como “Hino da Alegria” – e que abriria caminho às “inovações” de Mahler,por exemplo – foi repetidamente censurado.

Nesses tempos sombrios, os detractores do génio opunham-se a que se cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a alegria é a filha querida dos deuses”. Mas, como dizia o Rubem, se o optimismo é da natureza do tempo e a esperança é da natureza da eternidade, agimos esperançosos, professores amorosos souberam resistir. Porque, atrás de tempos sombrios tempos luminosos sempre vêm.

Acolhei o amoroso beijo do avô José

 

Por: José Pacheco

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